Com vacinação avançada, Brasil retoma normalidade

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Foto: Pedro Vilela/Getty Images

Em um dos trechos mais conhecidos do clássico Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, o personagem Riobaldo sintetiza o que é a passagem da vida. “O correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” Há quase dois anos, a humanidade aprende, dia a dia, o que significam as palavras do jagunço criado pela cabeça brilhante de Guimarães Rosa. O medo de um vírus desconhecido, a angústia do isolamento, a esperança com a vacina e a montanha-russa de emoções com o sobe e desce de casos nos colocaram em um ciclo que parecia infinito de esquenta e esfria, de aperta e afrouxa, de sossega e desinquieta. Hoje, porém, depois de 22 meses de pandemia, na escala de Riobaldo estamos mais perto do sossega. Aos poucos, a vida retorna sem tanto sobressalto e comemoramos, enfim, a retomada. É um retorno que vem cheio de questionamentos e emoções inesperadas. Surpreende, por exemplo, a alegria de poder ir de novo ao mercado e escolher a fruta preferida sem medo – ou com menos medo. Ou o prazer ao ver o time de novo da arquibancada. Boa parte do mundo está vivendo essa experiência de renascer de um jeito diferente. No Brasil, já se planeja o Carnaval de 2022, enquanto nos Estados Unidos o infectologista Anthony Fauci, conselheiro para assuntos de saúde do governo americano, liberou a criançada para brincar no Halloween. “Se você estiver vacinado, pode aproveitar a brincadeira”, disse Fauci.

O caminho para chegar até esse ponto não foi fácil e ele só se tornou possível graças aos enormes sacrifícios feitos para a adoção de temporadas de isolamento social e da histórica contribuição da ciência no desenvolvimento de imunizantes em tempo recorde. Mas o fato é que a atmosfera está completamente diferente da vivida há um ano — e o Brasil tem também motivos para uma comemoração cautelosa. É verdade que o governo fez de tudo para sabotar as medidas necessárias de combate à doença, mas, quando ficou claro que a esmagadora maioria da população queria vacina no braço (e não a cloroquina propagandeada por Bolsonaro), a oferta de doses de proteção foi se multiplicando e a campanha de imunização mostrou-se efetiva para reduzir números de óbitos e de contaminações. Chegou-se a ponto de algumas cidades começarem a discutir o afrouxamento das regras de uso de máscara de proteção em ambientes ao ar livre, sem que isso soe como negacionismo. Estimulados por essa perspectiva otimista, comércio e turismo, dois dos segmentos mais afetados pela pandemia, preparam-se para um retorno que deverá ser suficiente para injetar o fôlego necessário para a recuperação. As projeções de Glauco Humai, presidente da Associação Brasileira de Shopping Centers, dão o tamanho da expectativa. “Vai ser um grande Natal”, diz. “Neste ano, esperamos crescer em vendas cerca de 60% em relação ao ano passado, ficando próximo do aumento registrado em 2019”, diz. Empresários do setor de turismo têm esperanças semelhantes. Os cruzeiros, por exemplo, estarão de volta, gerando 35 000 empregos e 2,5 bilhões de reais em receitas, segundo a Associação Brasileira de Cruzeiros Marítimos. O segmento todo calcula a criação de 600 000 postos de trabalho e o aumento das receitas em 4,6% neste ano comparado a 2020. Um bom termômetro são os índices do Airbnb, plataforma de aluguel de imóveis. As reservas ultrapassaram os níveis dos tempos pré-Covid e, em municípios com mais de 50 000 moradores, subiram 50%. Fernando de Noronha e Ilhabela, duas das ilhas mais famosas do país, estão apostando nas comemorações de fim de ano depois de passarem o réveillon de 2021 sem festas. Em Ilhabela, no Litoral Norte paulista, não há mais barreira sanitária para visitantes desde agosto. Em Noronha, a reabertura gradual começou em setembro do ano passado. “Estamos em uma situação que nos deixa tranquilos e esperançosos para a retomada”, afirma o administrador do arquipélago, Guilherme Rocha. A Pousada Zé Maria, a mais famosa da ilha, ainda vende ingressos para a sua concorrida festa de réveillon, mas não tem mais vagas para hospedagem nesse período.

Durante os quase dois anos de pandemia, as engrenagens do circuito de shows e eventos também foram duramente afetadas. Felizmente, o vento mudou para quem trabalha no segmento. Em São Paulo, a partir do dia 1º de novembro não haverá mais restrições para a lotação de público em casas de shows e serão permitidos espetáculos ao vivo com as pessoas em pé. O primeiro grande evento do estado sem limitações será o tradicional rodeio de Jaguariúna, em novembro e dezembro, na cidade do interior paulista. A expectativa é de um público de 30 000 pessoas por dia. Os responsáveis pelo estádio do Palmeiras, o Allianz Parque, que em 2017 foi o espaço com maior concentração de megashows do mundo, preveem superar todos os recordes em 2022. O local tem 48 datas de shows reservadas. Também voltaram à cena na metrópole os musicais e a etapa brasileira da Fórmula 1, prevista para novembro, em Interlagos. Na festa da retomada, há espaço ainda para o retorno dos Carnavais. No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes garantiu a folia do próximo ano e o Rock in Rio, um dos festivais de música mais conhecidos do Brasil e que recebe cerca de 100 000 pessoas por dia, vai acontecer, com shows já confirmados de Demi Lovato, Justin Bieber, Iron Maiden, Dua Lipa, Ivete Sangalo, entre outros. Luiz Calainho, sócio de casas de shows como Blue Note e do Teatro Riachuelo, está otimista. Em 1º de outubro, depois de mais de um ano fechados, ele reabriu os negócios. “Tenho convicção de que, quando retornar, a curva de crescimento será ascendente sempre”, afirma. Em geral, o exigido para a entrada em eventos públicos é o passaporte de vacinação, documento fornecido depois da vacinação com duas doses ou dose única, no caso da vacina da Janssen. E uso de máscaras (ao menos, por enquanto).

Nas escolas, depois do longo inverno provocado pela Covid, vê-se hoje a volta do ensino 100% presencial, que começa de forma obrigatória em todo o estado de São Paulo na próxima segunda-feira. “Observamos a vontade muito forte da maioria das famílias, que gostariam que os filhos retornassem ao convívio pelos impactos que a situação estava causando na vida de crianças e jovens”, conta Eduardo Flauzino, diretor-geral dos colégios do Grupo SAEA — Sociedade Agostiniana de Educação e Assistência (colégio Agostiniano Mendel, um dos mais tradicionais de São Paulo). Na Universidade de São Paulo, as aulas presenciais foram retomadas na semana passada, depois de a universidade investir 150 milhões de reais em reformas para atender às exigências dos protocolos sanitários. O retorno prioriza alunos de cursos que exigem trabalho de campo ou em laboratório. Na avaliação do reitor, Vahan Agopyan, não era mais possível manter os estudantes fora do campus, sob pena de ocorrer grande prejuízo ao aprendizado.

Vale lembrar sempre: tudo isso não seria possível sem o avanço consistente da vacinação — hoje, 47% dos adultos brasileiros estão totalmente imunizados — e a queda do índice de transmissibilidade do vírus no país. Na terça-feira 12, a taxa chegou ao menor patamar desde o primeiro caso por aqui: 0,60. Em abril de 2020, ele havia batido em 2,81. Depois da catástrofe provocada pelos picos da doença, especialistas renomados chegaram a projetar que poderíamos alcançar o patamar de 5 000 mortes diárias. Ainda bem que essas previsões mais trágicas não se concretizaram, mas é um engano relaxar totalmente as medidas protetivas acreditando que a pandemia está totalmente sob controle. Não está, como mostra a média ainda alta de 300 óbitos por dia registrados hoje no Brasil. “O mundo já teve algumas surpresas nas iniciativas de flexibilização. Quando surgiram as variantes gama por aqui, a delta na Europa e nos Estados Unidos, quem estava abrindo teve de fechar novamente”, lembra o médico Renato Kfouri, presidente da Sociedade Brasileira de Imunização. De fato, a performance entre países que iniciaram a retirada de restrições não é uniforme. Na Holanda e em Israel, os números cresceram depois da flexibilização. No Reino Unido, os casos se mantêm estáveis. Mesmo assim, há percalços. A esperada turnê de retorno da banda Genesis, por exemplo, teve de ser adiada após o primeiro show em Glasgow, em 7 de outubro, porque quatro músicos testaram positivo para Covid-19. Em muitos países, há o desafio imenso de vencer os antivacina e ampliar a taxa de imunizados para 90% da população, caso dos Estados Unidos e dos países pobres, onde o ritmo da vacinação é desolador. Em alguns, não passa de 2% o total de habitantes que receberam a primeira dose. E enquanto o mundo todo não estiver protegido, a sombra da Covid-19 permanecerá.

Aliás, a devastação provocada pela doença jamais poderá ser esquecida — até agora, foram cerca de 5 milhões de mortes no mundo, entre as quais, infelizmente, 600 000 de brasileiros. Também é um equívoco imaginar um mundo sem Sars-CoV-2. O vírus da Covid-19 veio para ficar e cabe a nós aprender a conviver com ele assim como vivemos com o Influenza, o vírus da gripe. Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, país que até agora tinha se mantido firme no controle de casos com a adoção de lockdowns, entendeu isso. Depois do registro de infecções mesmo com o fechamento das atividades, ela compreendeu que não há condições para a implantação de um plano Covid zero e suspendeu as restrições. Assim, a retomada impõe-se com a vacinação das pessoas e com a observação e o tratamento dos doentes. Por aqui, estamos nesse caminho. Com as devidas doses de responsabilidade para minimizar os riscos à saúde, nós brasileiros já podemos finalmente desfrutar a alegre experiência de retorno à vida. Ou como diria Riobaldo: “desinquietar”.

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