Economista liberal diz que Brasil tem que parar de se submeter ao mercado

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Foto: Edu Frazão

A pandemia mostrou que é o Estado, e não o mercado, que deve ser o principal ator no planejamento estratégico da economia de um país, segundo o economista André Roncaglia, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo) e doutorando visitante na Universidade de Massachusetts Amherst, nos Estados Unidos.

Em entrevista ao UOL, ele disse que os EUA e a Europa já começaram a seguir esse caminho, após décadas de políticas econômicas que colocaram os mercados como principais agentes das atividades. Mas o Brasil estaria na contramão do mundo, ao reduzir o tamanho do Estado e aumentar a importância do setor privado. Para ele, o país precisa deixar de colocar o Estado como subalterno ao mercado.

A opinião do economista aparece logo no primeiro capítulo do recém-lançado “Bidenomics nos Trópicos”, livro que reúne 19 textos de 21 economistas, incluindo ex-ministros, como o coautor Nelson Barbosa, ministro do Planejamento e da Fazenda no governo Dilma Rousseff.

Apesar da proximidade dos autores com o PT, Roncaglia diz que as propostas devem ser adotadas por qualquer um que ganhar as eleições em 2022, independentemente do partido.

Veja abaixo os principais trechos da entrevista.

Por que escolheram abrir o livro com uma citação de Oswald de Andrade, de 1937, segundo a qual o Brasil é um “país de sobremesa”

André Roncaglia: É uma referência ao fato de sermos historicamente um país com viés agroexportador, de dependermos da venda de produtos com baixa tecnologia e pouco processamento. Quisemos destacar a necessidade que o Brasil tem de fazer de política industrial.

Por que partir da agenda do presidente dos EUA, Joe Biden, para produzir um amplo trabalho sobre economia brasileira? Não são países muito diferentes?

São, mas estamos falando mudanças que estão ocorrendo no pensamento econômico e que já estão no centro do capitalismo mundial a respeito da importância central do Estado.

São mudanças que aumentam a participação do Estado na economia, para que ele organize políticas industriais, com atenção à produção cada vez mais verde, e que não deixe de lado a questão da desigualdade, a importância de que os frutos do desenvolvimento econômico sejam repartidos mais igualmente na sociedade.

O Brasil está indo na contramão do que fazem EUA e Europa, com relação ao papel do Estado na economia? Por quê?

Sim, porque vem há décadas fazendo mudanças que aumentam a importância do setor privado na economia, com redução do tamanho do Estado, exatamente o contrário do que outros países estão fazendo, como reestatização, a volta do Estado planejador e o aumento dos investimentos do setor público.

Mas isso tem sido ruim para a economia brasileira?

A política do atual governo é a de reduzir a capacidade de o Estado atuar, e a gente está vendo no mundo que isso não funciona. Entidades internacionais, como o próprio FMI [Fundo Monetário Internacional], reconhecem que a agenda neoliberal não entregou os resultados positivos em termos de maior crescimento e redução de desigualdades.

Estamos indo na contramão do que os países centrais da economia mundial estão fazendo. E o problema, como vimos na pandemia aqui no Brasil, é que, quando o país necessita do Estado, ele tem menor capacidade de atuação, porque está sendo desmantelado. A reação do governo tem sido mais lenta que em outros países e não é por acaso.

A pandemia foi um elemento decisivo dessa virada de percepção?

A pandemia se mostrou um problema econômico que exigiu a necessidade de coordenação entre pessoas. E ficou nítido que o mercado não tem como coordenar vários setores, quando o objetivo vai além da lucratividade e da rentabilidade. Quem pode fazer isso é o Estado.

Você diz que a redução drástica do tamanho do Estado reduz a capacidade de reação do governo quando ela é necessária. O Brasil é um exemplo disso?

Isso ficou claro na pandemia. A gente vem acelerando o processo de desmantelamento do setor público. O programa do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta era reduzir o SUS (Sistema Único de Saúde), até que ele viu a necessidade de reforçar o papel do Estado em vez de diminuir. A reação poderia ter sido mais rápida. Se o SUS fosse prioridade do governo desde o início, não algo a ser reduzido, o sistema teria sido protagonista e teria tido maior autonomia desde o começo da pandemia.

O impeachment de Dilma Rousseff abriu caminho para uma agenda de reformas com o objetivo de reduzir o papel do Estado ao de um auxiliar subalterno do mercado, segundo o livro. Isso é irreversível?

Nada é irreversível dentro do jogo da política e da democracia. Mudanças acontecem. Aliás, isso está acontecendo agora. Parte da essência da Constituição de 1988, que coloca o Estado como peça central no desenvolvimento do país, está sendo alterada a cada reforma no Congresso, como a trabalhista, a previdenciária. Existem mudanças que podem ocorrer dentro do sistema democrático.

Da mesma forma, planos e regras que estão sendo implementados hoje pelo atual governo podem ser corrigidos em um novo governo.

Você aponta passos para que o Estado volte a influenciar o desenvolvimento, citando a recriação do Ministério do Planejamento, a recuperação da capacidade de atuar do BNDES e o fortalecimento de órgãos públicos de inovação, como Fiocruz e Embrapa. O livro seria um indicativo de um programa de um eventual governo do PT?

Não, porque tem de tudo nele. Tem pessoas ligadas ao PT, mas também economistas do PDT, pessoas ligadas ao Ciro Gomes, ex-ministros de FHC e José Sarney. Nossa proposta é destravar o debate.

[Precisamos de] um governo que enxergue o que está acontecendo no mundo e veja que é preciso recuperar o papel planejador e de atuação do Estado para o país sair da crise. Qualquer governo precisa fazer isso, exceto o atual, porque a chance de que alguma dessas propostas seja adotada no governo Bolsonaro é zero.

O livro afirma que um dos desafios de tornar o Estado protagonista é a alternância de poder. Mas isso não é da democracia?

A gente tem vários exemplos no setor público de que órgãos e empresas de Estado podem funcionar independentemente de governo ao longo dos anos. Histórias como a da Embrapa, da Petrobras, da Embraer, de universidades e institutos de pesquisa, que são destaques no mundo. Essas estruturas existem, na verdade, até para conter o personalismo dos governos.

Você diz que países como o Brasil têm menos instrumentos para atuar, porque mais gasto público pode gerar inflação e o aumento do consumo da população acaba batendo em gargalos de produção. Então vamos ficar sempre no voo de galinha?

O problema no Brasil é que a gente tem uma tendência a minimizar os investimentos. O empresário tem maior propensão a adiar investimentos porque sabe que os juros podem subir a qualquer momento para combater a inflação.

Precisamos encontrar formas de evitar que os juros fiquem subindo com tanta frequência, a cada momento em que a inflação sobe além da meta. Para fazer isso, podemos usar outras formas de medir a inflação. Por exemplo, dar mais atenção ao núcleo de inflação que ao índice cheio.

Dessa forma, poderemos ver se a alta da inflação é algo localizado, que não está de fato contaminando toda a economia, ou se é algo mais amplo. Outra possibilidade é usar uma média de inflação anual em vez de olhar para a meta apenas no fim do ano. Porque, muitas vezes, a inflação tem picos numa época do ano, mas na média ela está controlada. Dessa forma, a gente não precisaria ficar elevando juros com tanta frequência, como acontece historicamente no Brasil.

A descrição que você faz do papel do Estado lembra o desenvolvimentismo da era PT, que foi acusado de ter contribuído para a crise de 2015. O que acha dessas críticas? No que as propostas do livro diferem do desenvolvimentismo?

Atribuir ao desenvolvimentismo a causa da crise é uma visão que se encaixa no terreno polarizado atual no Brasil, mas que não achamos adequada. As causas da crise foram múltiplas, tendo a ver com erros de políticas econômicas, mas também com cenário externo e com o fim do ciclo de alta das commodities, por exemplo.

Se as propostas do Biden, que citamos no livro, repetem questões que estavam presentes no governo do PT, isso tem a ver com a agenda, que é de fato desenvolvimentista, porque ela defende maior participação do Estado. Não coloca sobre o setor privado toda a responsabilidade pelo desenvolvimento econômico, o que não achamos justo nem factível.

Mas são momentos bastante diferentes. Hoje temos uma agenda focada na transição estrutural verde, um salto em direção às tecnologias sustentáveis. A política industrial, ainda que tenha recebido bastante atenção comparada a governos anteriores, não foi o foco central dos governos do PT.

O que buscamos com esse trabalho é aprender com erros e acertos do nosso passado, olhar para o que está acontecendo no mundo e tentar traduzir isso para o Brasil de maneira mediada, construindo uma nova agenda com base na questão ambiental, que não estava posta 15 anos atrás como está agora.

Uol 

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