Estudo de “cloroquinas” omitiu dezenas de mortes

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Foto: Reprodução

A apresentação oficial de um estudo para uso da proxalutamida contra covid-19 no Amazonas omitiu 23 mortes de pacientes entre os que tomaram o medicamento e 21 entre os que tomaram placebo. No total, 645 pacientes participaram da pesquisa, que teve o apoio e patrocínio do Grupo Samel, rede de hospitais e planos de saúde. O estudo foi aprovado em janeiro pela Conep (Comissão Nacional de Ética e Pesquisa, do Conselho Nacional de Saúde) —órgão que fiscaliza as pesquisas científicas no país—, e realizado entre fevereiro e março.

Na apresentação dos resultados, em 11 de março, em um hospital da Samel em Manaus, os pesquisadores afirmaram que houve 12 mortes, entre os 317 pacientes que tomaram a proxalutamida. Entre os 328 que tomaram placebo, foram 141 mortes. Já em uma publicação no site Clinical Trials, em junho, os mesmos pesquisadores apontaram 35 óbitos entre pessoas que usaram a droga e 162 entre as que usaram placebo.

O estudo não incluiu pacientes intubados, segundo os pesquisadores, que são os que têm mais risco. As divulgações, no entanto, não dão detalhes sobre a situação clínica dos participantes nem sobre o tratamento oferecido, além da proxalutamida. E há outra diferença entre os dados: o período para aferir a mortalidade.

A variação é grande:

Segundo a apresentação em Manaus, a taxa de mortalidade entre os pacientes que tomaram a proxalutamida foi de 3,7%. Entre os que usaram placebo, foi de 47,6%. Neste caso, foi usado como referência um período de 14 dias.

No site Clinical Trials, a mortalidade entre os que tomaram a proxalutamida foi de 11%. Entre os que usaram placebo, foi de 49,39%. Aqui, o período foi de 28 dias.

A proxalutamida foi inicialmente testada para câncer de próstata e só depois para covid. Mas a importação e o uso de produtos contendo esta substância estão suspensos em pesquisas científicas no Brasil desde 2 de setembro, por decisão unânime dos técnicos da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Ao UOL, o endocrinologista Flávio Cadegiani, responsável pelo estudo, negou as divergências e disse que os números são diferentes pois houve mudança nos critérios usados como referência. O Grupo Samel informou que não é responsável pela pesquisa e que apenas “participou na condição de campo de estudo na cidade de Manaus, após análise feita por seu corpo técnico-científico” (leia mais abaixo).

Todas as publicações do estudo, ressalta-se, não têm nenhum valor científico. Para isso, seria necessária uma publicação de artigo com detalhes em revista especializada, validando os dados —o que não ocorreu. Não há nenhuma prova científica do efeito da proxalutamida para tratamento de covid-19.

No dia da apresentação em Manaus, os apresentadores afirmavam que o estudo era histórico e iria mudar o curso da pandemia de coronavírus. O evento pode ser visto no Youtube do Canal do Grupo Samel.

A droga chegou a ser elogiada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e chamada de “nova cloroquina”. O estudo repercutiu no país, com direito a postagem do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, comemorando os bons resultados.

 

Resultado divulgado na plataforma clinicaltrials.gov - Redrodução/clinicaltrials.gov - Redrodução/clinicaltrials.gov

Além dos números informados na apresentação em Manaus e no site Clinical Trials, há ainda um terceiro dado, posteriormente citado nas redes sociais pelo pesquisador Flávio Cadegiani.

Há dez dias, ele afirmou que foram 25 óbitos entre os pacientes que tomaram proxalutamida e 175 entre os que tiveram “tratamento padrão”. Este segundo grupo teria 322 pacientes —menos do que os 328 informados anteriormente. Ele não explicou o que era o tratamento padrão.

A forma como foi conduzido e os resultados do estudo estão sendo alvo de investigação criminal no MPF (Ministério Público Federal) do Amazonas. A pesquisa foi denunciada pela Conep, que pediu a apuração da PGR (Procuradoria Geral da República).

A Conep afirma que o número absoluto e percentual de mortes totais do estudo são completamente fora do padrão e que os pesquisadores descumpriram os termos propostos —e aprovados pela comissão. A hipótese de fraude nos dados também é apontada, já que há inconsistências nos resultados.

À comissão, os pesquisadores afirmaram que, no total, 200 pacientes morreram —incluindo os que tomaram proxalutamida e placebo. Entretanto, em situações anteriores, para a Conep, falaram em 170 e 178 mortes.

O estudo coordenado por Flávio Cadegiani foi aprovado pela comissão em 27 de janeiro, mas suspenso em maio (já após a finalização) porque os membros da comissão perceberem as irregularidades. A Conep quer saber agora quais os números reais dos estudos e detalhes sobre as mortes.

Pode ter havido mais mortes, não temos como ter certeza porque pedimos detalhamento, e eles se recusaram a fornecer. Se os dados são verdadeiros, eles teriam de ter passado o grupo placebo para receber a proxalutamida, o chamado cross-over; e não assistir passivamente essa quantidade de óbitos.”
Jorge Venâncio, coordenador da Conep

“Essa conta não fecha, e nem a versão deles bate. Agora o que foi feito na realidade precisa realmente de uma investigação com poder de polícia, para apreender os documentos necessários e esclarecer o que houve”, diz Venâncio.

Outro ponto questionado pela Conep é que a pesquisa foi autorizada para ocorrer em apenas um centro de pesquisa, mas acabou sendo feita em 12 hospitais de nove cidades do Amazonas. Um outro braço do estudo foi descoberto depois no Rio Grande do Sul, e está sob investigação.

Além disso, a Conep informa que deu parecer favorável para que a pesquisa fosse realizada com 294 voluntários em Brasília. Mas, ao final, ela foi realizada com 645 pessoas, sendo que 580 chegaram ao fim do estudo.

A alta mortalidade entre os que teriam tomado placebo chama mais a atenção porque, segundo os pesquisadores, o estudo não incluiu pacientes intubados, que são os que têm mortalidade maior, próxima a 80%.

Entre os pacientes que teriam tomado placebo, a mortalidade verificada foi de 47% —pelo menos o dobro da encontrada no mesmo período em hospitais do SUS (Sistema Único de Saúde) no estado, somando casos moderados e graves internados dentro e fora das UTIs. Os dados foram checados pelo no portal DataSUS.

Em fevereiro, quando o estudo começou, a taxa de mortalidade de pacientes com covid-19 no Amazonas foi de 24,7% nos leitos do SUS. Em março, quando os hospitais já haviam ultrapassado o pico, essa taxa caiu para 18,8%.

Ao UOL, o MPF-AM informou que instaurou, em abril deste ano, procedimento para apurar “eventual irregularidade no que diz respeito a possíveis falhas graves e fraudes” no estudo.

Entretanto, como o estudo já havia sido encerrado, o MPF arquivou o caso na área cível, mas encaminhou para investigação na área criminal. Um procedimento está aberto, mas tramita em sigilo.

“O Núcleo de Combate à Corrupção do MPF no Amazonas também irá avaliar o caso para apurar possível omissão de agentes públicos”, afirmou em nota o MPF-AM. Sobre a denúncia do Conep encaminhada à PGR, o MPF amazonense diz que não recebeu nenhum pedido de apuração até a semana passada.

O órgão também encaminhou os autos do procedimento aos CRMs (Conselhos Regionais de Medicina) nos estados dos médicos envolvidos na pesquisa, sugerindo a instauração de processo administrativo disciplinar.

O CRM do Amazonas informou à reportagem que “o caso está sendo apurado dentro das atribuições dessa autarquia e que os procedimentos éticos tramitam em sigilo, conforme Código de Processo Ético-Profissional”.

Em Itacoatiara (AM), ao menos uma família registrou boletim de ocorrência e pede investigação da morte de uma paciente que tomou proxalutamida no hospital da cidade.

O falou com o médico Flávio Cadegiani, coordenador da pesquisa, que se defende das acusações. Segundo ele, os números divergentes apresentados se devem a diferenças de critérios usados como referência.

“A mortalidade pode ser vista em análise por protocolo [per-protocol], que consideram os pacientes que fizeram o tratamento adequado, sem abandono, e por intent-to-treat, que considera os pacientes todos, mesmo os que abandonam por qualquer motivo. Para publicação e para o clinicaltrials.gov, registramos os óbitos mesmo de pacientes que tenham tomado só um dia, e abandonaram, desistiram, por qualquer motivo, como é direito do participante, e vieram a falecer, por exemplo, 20 dias após”, diz.

Segundo o endocrinologista, esses óbitos foram incluídos para “deixar a análise a mais conservadora possível”. Em suas redes sociais, ele defende o estudo, apontando que ele teria mudado o rumo da pandemia no Amazonas.

Sobre a taxa de mortalidade de pacientes não-graves por covid, ele alega que o Brasil tem “grandes discrepâncias regionais” e que as mortes no Amazonas foram compatíveis com o percentual apresentado no estudo.

A mortalidade intra-hospitalar no Amazonas no mês de fevereiro de 2021 também foi próxima a 50%. Ou seja, a mortalidade no grupo placebo foi até ligeiramente menor do que o esperado. Isso que atuamos muito no interior, onde as condições são piores e a mortalidade tendia a ser ainda mais alta, porque tão e somente Manaus tem UTI.”
Flávio Cadegiani, coordenador da pesquisa

O pesquisador ainda refuta a denúncia de que houve mais pacientes do que o previsto.

“O projeto aprovado pela Conep está claro ao trazer o número de pacientes, não é número fixo, nem muito menos máximo, sendo aprovado sem qualquer ressalva. Mesmo que assim não fosse, existem orientações e normativas expedidas pela própria Conep que autorizam a implementação de alterações no protocolo, antes de qualquer autorização formal”, alega.

Outro ponto que ele cita é que o protocolo aprovado, assim como o parecer de aprovação, não mencionariam nenhum centro de pesquisa.

“O parecer deixa em aberto o campo para elencar os centros de pesquisa (hospitais) no Brasil, os quais seriam e foram incluídos no momento oportuno. Não há nesse parecer nenhuma condicionante, nem qualquer exigência de registro, ou de prazo de inclusão de hospitais, nem de nova autorização para a realização da pesquisa em qualquer hospital”, completa.

Também procurado, o Grupo Samel disse que “não é responsável” pelo estudo e que não foi procurado pela Conep “para tratar de esclarecimentos sobre o estudo do medicamento proxalutamida, da qual participou na condição de campo de estudo na cidade de Manaus, após análise feita por seu corpo técnico-científico”.

“Diante deste fato, a Samel informa que não pode se pronunciar devido ao desconhecimento dos questionamentos da Conep”, diz a nota enviada à reportagem.

Uol  

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