Exército espionou civis para identificar opiniões divergentes

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Foto: Cb Estevam/CComSEx/ Exército Brasileiro

De 14 de agosto de 2019 a 20 de novembro do mesmo ano, o Exército brasileiro monitorou o comportamento, nas redes sociais, de cidadãos comuns, parlamentares, jornalistas e blogueiros. Os resultados dessa atividade estão nas 124 páginas dos relatórios de Acompanhamento e análise do PL 1645 nas mídias sociais, que foram repassados oficialmente ao Correio Braziliense pela própria força terrestre. Os documentos mostram também como a corporação traçou estratégias políticas para influenciar na tramitação do projeto de lei, que tratou da reestruturação das carreiras militares. A proposta, depois de aprovada no Congresso, foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em dezembro de 2019.

Os relatórios foram elaborados pela Divisão de Produção e Divulgação do Centro de Comunicação Social do Exército (Ccomsex). O conteúdo informa que o trabalho de monitoramento das redes sociais teve o objetivo de “acompanhar e analisar a tramitação do Projeto de Lei 1645/2019”, “verificando o impacto das notícias na imagem do Exército Brasileiro”. Vários relatórios trazem um item intitulado “Classificação dos grupos monitorados”.

Na sequência são apresentados os alvos do monitoramento: “1) Grupo Cidadão — perfis de pessoas com pouco poder de influência nas redes; 2) Grupo político — perfis de políticos das esferas Federal, Estadual e Municipal (tags por função — Ex: Político Senador, Político Dep Federal); 3) Grupo Mídia e Grupo Blog — perfis de órgãos de mídia subdivididos e mídia (perfil de abrangência nacional), mídia local (perfil de abrangência regional) e blog (perfil de blog pessoal de jornalistas); 4) Forças Armadas — perfil de órgãos das Forças Armadas; 5) Forças Auxiliares — perfil de órgãos das Forças Auxiliares dos Estados; 6) Entidades Religiosas — perfil de órgão de entidade religiosa de abrangência”; 7) Grupo Associações de Militares — perfil de entidades agregadoras de militares da reserva.

O conteúdo desmente declarações feitas na semana passada pelo ministro da Defesa, general Braga Netto, durante audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara. Irritado após ser questionado pelo deputado Glauber Braga (PSol-RJ) sobre o assunto, o militar negou que o Exército faça monitoramento de políticos. Na ocasião, o congressista disse ter informações de que ele foi um dos monitorados. “Não existe, nem vi o nome do senhor em nada, nem passa perto. Não existe monitoramento de parlamentares, não existe”, disse o ministro, ao lado dos comandantes das três Forças Armadas.

A tramitação do PL 1645 no Congresso foi marcada por muitas tensões e protestos de associações de praças da reserva das Forças Armadas. Representantes dessas entidades consideram que o projeto concedeu os maiores benefícios aos oficiais de altas patentes, em detrimento dos soldados, cabos, sargentos e suboficiais. Durante os debates sobre a proposta, foram parlamentares da oposição, e não governistas, que prestaram apoio às demandas dos praças.

A apuração do Correio começou depois que a revista Sociedade Militar publicou uma série de relatórios que teriam sido produzidos pelo Exército e que trazem os nomes de vários parlamentares supostamente monitorados. Os textos publicados pela revista, também intitulados Acompanhamento e análise do PL 1645 nas mídias sociais, apontam como um dos congressistas mais influentes o deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ), que, à época da tramitação do PL 1645, era filiado ao PSol. “Cabe ressaltar que o Dep. Marcelo Freixo é um forte influenciador de massas radicais no Twitter e possui expressão com seus mais de 1 milhão de seguidores”, diz um trecho publicado por Sociedade Militar.

O conteúdo afirma também que “o PSol, ainda com as manobras regimentais e destaques, apresenta-se como o maior detrator da Comissão” onde tramitava o projeto de lei. “Fato relevante a ser ressaltado neste campo de poder foi a articulação do Psol, ator que assumiu o protagonismo da oposição do governo dentro da Comissão Especial”, diz o texto.

Outro político do Psol que, segundo o material divulgado pela Sociedade Militar, atraiu as atenções do Exército, é o deputado Glauber Braga (RJ). O texto cita uma entrevista concedida pelo parlamentar à mesma revista. “A notícia apresenta o alinhamento dos integrantes das Associações de praças e inativos com deputados do Psol”, diz o conteúdo. Além disso, está escrito que o parlamentar “mostrou-se contra a posição do relator e avocou para si e seu partido a responsabilidade pelos direitos de igualdade das praças das Forças Armadas”.

Há ainda citações a outros 19 deputados federais, entre eles Vinícius Carvalho (Republicanos-SP), relator do PL. “Ele explicou com muita propriedade as gratificações de Altos Estudos propostas no PL”, diz o texto publicado pela Sociedade Militar.

O Correio, depois de apurar junto à revista que o material divulgado foi recebido de uma fonte militar, fez contato com o Centro de Comunicação Social do Exército (Ccomsex) e questionou se o conteúdo era autêntico. Como resposta, a assessoria negou a autenticidade. Além disso, encaminhou algumas explicações sobre o assunto, mas nada é informado sobre o monitoramento de políticos e de outros alvos. A assessoria também enviou uma série de relatórios apresentados como oficiais. Os textos são semelhantes aos divulgados pela revista, mas têm várias partes omitidas por tarjas pretas, principalmente nomes de parlamentares e outras autoridades, partidos políticos, veículos da mídia, jornalistas e blogueiros.

Ainda assim, os trechos que não foram omitidos dizem muito sobre a natureza desse trabalho. O texto de um dos relatórios, elaborado a partir de monitoramento feito entre os dias 1 e 4 de novembro de 2019, mostra como o Exército agiu para favorecer a aprovação do PL 1645.

No documento, os militares afirmam que “a tentativa de ganhar a narrativa em busca de uma proposição positiva nas Redes Sociais pode se tornar desgastante e ineficiente, quando se usa apenas os próprios meios”. Eles orientam que “é preciso que influenciadores atuem nas redes social (sic), pois são estes que detém (sic) maior capacidade de reverberar a linha narrativa que se deseja propagar. Perfis pessoais possuem uma capacidade representativa na rede muito superior a perfis institucionais”.

Em outro trecho, o documento afirma que, “no cenário político, é preciso esvaziar o discurso do (tarja) e dar visibilidade ou chamar a participação, os atores políticos favoráveis ao PL 1645”.

Um outro relatório, elaborado a partir de monitoramento realizado no período de 13 a 20 de novembro de 2019, reflete uma preocupação especial com os partidos de oposição. “Nesse momento, dado o cenário político polarizado somado o acirramento da pressão da opinião pública sobre o Congresso influenciando em decisões das Casas legislativas, é preciso que influenciadores com uma narrativa favorável ao PL atuem nas redes sociais com o intuito de que não ocorra ações semelhantes às propostas pela bancada do (tarja) durante a tramitação do projeto na Câmara dos Deputados, quando parlamentares de oposição se aproveitaram da pauta criada pelas associações de praças para atacar o projeto de lei”.

Em outro trecho, os militares afirmam que, “com o objetivo de informar o público interno é preciso coordenar entre as três forças e o (tarja) a divulgação de palestras que, se for o caso, sejam ministradas para todos os públicos, ativa e reserva, e que os sites institucionais e perfis nas plataformas digitais contenham conteúdos informativos sobre o tema”.

O documento diz ainda que “cabe avaliar a possibilidade de ser mantida uma rotina de postagens informativas sobre a tramitação do PL durante os dias de atividade parlamentar no Senado elencando os principais fatos da semana, tudo com a finalidade de evitar a construção de narrativas falsas”.

Em um outro relatório, produzido com base em monitoramento realizado entre 4 e 6 de novembro de 2019, os militares alertam que “os perfis de esquerda, principalmente no Twitter, já atuam de forma coordenada para desclassificar a pauta econômica do (tarja) podendo ser claramente verificado entre os políticos (tarja) e seus partidos satélites (tarja), perfis de jornalistas e blogs de esquerda, bem como personalidades alinhadas com a causa lulista a referida postura digital”.

O texto diz ainda que “durante a tramitação na Câmara os partidos de oposição se aproveitaram da instabilidade causada pelas associações de praças e militares da reserva para tumultuar a caminhada do projeto na casa”. “Mais uma vez os partidos de oposição poderão se unir à causa das associações militares reforçando a narrativa de que o projeto é desigual em suas medidas entre oficiais e praças”, afirma o documento. Os analistas destacaram também que a “esquerda tentará qualificar a reforma como desmonte do serviço público e aprofundadora das desigualdades do país”.

O Correio teve acesso a um Requerimento de Informação que o deputado Marcelo Freixo enviou ao Ministério da Defesa, em 23 de agosto. No documento, o parlamentar pede uma série de esclarecimentos, sobre a organização do monitoramento, o valor pago pelo Exército e a modalidade da contratação dos serviços, entre outros. “Os fatos são graves e podem representar a quebra da harmonia e independência entre os Poderes da República, além de uma afronta à inviolabilidade das opiniões, palavras de votos dos Deputados Federais”, escreveu Freixo. Porém, até o momento, o deputado não recebeu resposta do ministério.

Segundo as informações encaminhadas pelo Exército ao Correio, o Acompanhamento e análise do PL 1645 nas mídias sociais foi feito com o uso das ferramentas V-tracker, a busca avançada do Twitter (gratuita e oferecida pela plataforma) e o Google Alerts (gratuita e disponibilizada pelo Google). Conforme a força terrestre, “todas são amplamente conhecidas e fazem o acompanhamento de fontes abertas, não havendo, portanto, qualquer grau de sigilo”.

Correio Braziliense