Volta da inflação deve manter economia anêmica

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Foto: Paulo Lopes/Anadolu/Getty Images

Nas sociedades modernas, a despeito do determinismo religioso de muitos líderes que se acham imbuídos de uma missão divina, o poder de criar e derrubar reis, presidentes ou primeiros-ministros se sustenta de fato na esfera econômica. Sob esse aspecto, entre os brasileiros, nada é mais assustador do que o fantasma da volta da inflação e o risco de seu descontrole. O tema adquiriu tamanha centralidade que tem sido a mais forte arma usada pela oposição inteligente para fustigar a (até aqui) decadente popularidade do governo do presidente Jair Bolsonaro, especialmente agora que, tardiamente, o país começa a controlar a pandemia de Covid-19.

No acumulado de doze meses, o IPCA, principal índice de referência de preços ao consumidor, chegou em agosto a 9,68%, perigosamente próximo dos dois dígitos. Para o ano inteiro, o mercado financeiro estima alta de 8,51%. Longe de consistir um tema de interesse apenas de economistas, a inflação corrói o poder de compra da população, que rapidamente é afetada à medida que o arroz, a carne, o tomate, o botijão de gás, a energia elétrica e o transporte passam a devorar parcelas cada vez maiores dos seu vencimentos. “Isso assusta imensamente as pessoas, sobretudo a maioria da população, que, infelizmente, tem renda baixa. Tipicamente, ela não consegue se defender da inflação. Até recentemente, isso não era grande problema, mas agora é”, afirma o economista Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da gestora Gávea Investimentos.

Ao prejudicar o consumo, a inflação também acaba tendo imenso efeito para a já difícil retomada econômica do pós-pandemia. Por exemplo, com o aumento de preços, houve queda de 3,1% das vendas do comércio varejista, em agosto. Foi a primeira taxa negativa desde abril, segundo o IBGE. “O varejo detesta a inflação, mais do que qualquer outro setor, porque o efeito é direto para o consumidor”, reclama Marcelo Silva, vice-presidente do conselho de administração do Magazine Luiza e presidente do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV). “Vivi as épocas de inflação muito alta e, simplesmente, era uma tortura para o varejista, que ainda levava a fama de ser o causador da inflação. Passamos as últimas duas décadas com inflação baixa e, agora, estamos começando a ter esse problema de novo.”

Seria exagerado creditar o ressurgimento da inflação exclusivamente ao governo federal. No entanto, ele pode ser, sim, criticado por piorar uma situação que poderia ser passageira e também por demonstrar uma certa confusão no momento de propor saídas. O raciocínio da maior parte dos economistas é que a alta inflacionária atual tem raízes nas distorções causadas pela pandemia e em questões internacionais. Quando a Covid-19 começou a se alastrar pelo planeta, o primeiro impacto foi deflacionário, com uma súbita queda de demanda e a parada das economias. A retomada rápida de alguns países — em especial a China — e pesados estímulos despejados por bancos centrais para combater possíveis recessões mudaram tudo. O consumo voltou e a oferta, que tinha sido afetada por algumas semanas de paradas em empresas e cadeias de suprimentos, criou uma surpreendente cascata de eventos. Os alimentos subiram de preços em todo o mundo, elevando o valor das commodities em dólar. O custo de transporte marítimo se multiplicou. As matérias-primas começaram a faltar, encarecendo o processo de produção. O preço do barril de petróleo, que sofreu uma queda vertiginosa para cerca de 20 dólares em fevereiro do ano passado, agora já passa dos 80 dólares. E há quem acredite que possa superar os 100 dólares, algo visto pela última vez em 2014.

Tudo isso tem impacto na formação de preços de toda a economia. Por aqui, ainda por cima, uma estiagem histórica levou a aumentos nos preços da energia elétrica, um problema que pode ser atribuído a descuidos com o meio ambiente do passado, mas que não vem sendo tratado devidamente no presente. Em outras partes do mundo, sobretudo na Europa e na China, as preocupações estão no preço do gás que abastece as usinas de energia. São obviamente problemas globais, a que todos os países estão sujeitos no momento, de uma forma ou de outra.

Mas, se tal situação é considerada transitória nas economias desenvolvidas e mais estáveis, no Brasil existe o risco considerável de uma perda de controle da inflação. Tanto por existir uma cultura inflacionária que se perpetuou por décadas e que ainda não foi completamente esquecida, quanto pelas instabilidades e incertezas causadas pelo governo atual. Para melhor entender como o atual desafio pode ser enfrentado, VEJA procurou alguns dos principais responsáveis por debelar a hiperinflação que afligiu o Brasil entre a década de 80 e o começo dos anos 1990.

Ninguém deseja reviver um passado em que os salários se desvalorizavam imediatamente depois de recebidos e em que os repasses de preços aconteciam diariamente, obrigando as pessoas a fazer compras no mesmo dia que tivessem dinheiro na mão. Esse imenso problema só foi vencido com o projeto da equipe criadora do Plano Real, liderada pelo então ministro da Fazenda entre 1993 e 1994, Fernando Henrique Cardoso, e que tinha em suas fileiras nomes como os de Edmar Bacha, Pedro Malan, Pérsio Arida, André Lara Resende, Gustavo Franco e Gustavo Loyola. Depois, na virada para o novo milênio, Armínio Fraga e Henrique Meirelles, como presidentes do Banco Central, foram essenciais para evitar que a inflação retornasse.

É o duro trabalho de todos eles que a gestão atual, de Bolsonaro, do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do presidente do BC, Roberto Campos Neto, precisa preservar. E há uma questão essencial que deve ser enfrentada. Além de todos os fatores externos, um tem sido primordial para o baque inflacionário: a forte desvalorização do real diante do dólar, bem superior à das moedas de outros países emergentes. Trata-se de uma decorrência da falta de clareza em torno das contas públicas do governo e das instabilidades institucionais causadas por Bolsonaro. Como as commodities e muitas matérias-primas têm preços em dólar, quando ele sobe, tudo fica ainda mais caro. “Nossa situação fiscal não está resolvida, e este é o grande nó macroeconômico do país. Ela leva a uma volatilidade excessiva da taxa de câmbio”, afirma o economista Gustavo Loyola, ex-presidente do BC. “Já a instabilidade política afeta todo o ambiente, criando incertezas que tendem a ser negativas para o investimento, o que prejudica nosso desempenho.”

Portanto, a primeira lição aos gestores públicos está em dar recados claros ao mercado de que a prioridade está em sanear as contas — e que isso não é apenas um esforço retórico. Mesmo que o governo esteja em ano pré-eleitoral, é preciso deixar claro que só vai criar gastos com responsabilidade e sem um Orçamento criativo e irreal, o que não vem acontecendo nas discussões sobre como financiar o aumento do Bolsa Família. A segunda lição envolve tranquilizar o mercado de que o controle da inflação será perseguido, mesmo com medidas duras. Campos Neto declarou, na segunda-feira 4, que a taxa Selic “vai atingir o nível que for necessário para ancorar as expectativas” do mercado. É uma boa linha. Mas talvez um aperto mais forte nos juros venha tarde demais. A meta de inflação do BC para 2021 já está perdida — e parte dos analistas acredita que o mesmo já pode ter acontecido para o próximo ano. Pior. Se vier um aumento mais abrupto na taxa de juros para compensar essa situação, tal movimento certamente causaria recessão em 2022, uma decisão extremamente difícil de ser tomada em um país já empobrecido pela pandemia.

“Estamos correndo o risco de colocar a perder todo o trabalho de controle da inflação. Seria pior do que frustrante. Seria uma grande pena.”
Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos

A vida dos responsáveis pela moeda brasileira nunca foi fácil — e o momento atual é um exemplo radical disso. Dos 21 anos em que o regime de metas de inflação está em vigor, em quinze o índice fechou o período com mais de 1 ponto percentual fora do alvo. Em quatro deles, a inflação ficou acima do teto da margem de tolerância, o que vai acontecer de novo em 2021 e talvez em 2022 (veja o gráfico). O problema é que se afastar da meta muitas vezes cria desconfianças para o BC e para a moeda. Em consequência de um trabalho muito bem-feito, porém, a máquina que alimentava o dragão hoje não tem a mesma potência. “No passado, o Brasil resolveu conviver com a inflação. Hoje em dia, não, ninguém quer conviver com isso”, analisa o economista Edmar Bacha, um dos pais do Plano Real, que dá a sua receita. “Não é fácil subir juros, ninguém gosta, é um remédio amargo. Mas, quando está doente, é necessário.”

“No passado, o Brasil resolveu conviver com a inflação. Hoje em dia, ninguém quer ter esse tipo de vida novamente.”
Edmar Bacha, economista e membro da Academia Brasileira de Letras

Essa não é a primeira vez que o grande legado do Plano Real fica em risco. Em 2002, no ano da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, o país viveu uma situação de instabilidade e de surto inflacionário próxima da que existe hoje. Na ocasião, o mercado temia a irresponsabilidade econômica. Quando o petista apontou que Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston, seria o seu presidente do BC, as coisas se acalmaram. “O problema é sempre ligado a uma questão de credibilidade política e de gestão da economia, além de ações de política fiscal”, defende Meirelles. Para Armínio Fraga, que antecedeu Meirelles no posto, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, o importante é o governo atual manter o foco nas conquistas históricas do Plano Real, compreendido em sua versão completa. “O plano incluiu mecanismos para desindexar os preços da economia, mas que não teriam dado certo se o lado fiscal e o monetário não tivessem sido incorporados a ele”, comenta. “Se todo esse trabalho for colocado a perder, seria pior que frustrante. Seria uma grande pena. E nós estamos correndo esse risco, não há a menor dúvida. Seria gravíssimo se algo como uma indexação de preços voltasse a acontecer.”

“A situação fiscal não está resolvida. Esse é o nó macroeconômico que leva a uma volatilidade excessiva da taxa de câmbio.”
Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central

O brasileiro espera que cenas do passado, como as filas nos supermercados para comprar produtos antes que encarecessem, não sejam vistas de novo por aqui. Controlar a inflação foi um trabalho complexo, e a hiperinflação brasileira, embora não tenha sido a pior, está entre as maiores da história. Segundo um estudo realizado pelo americano Steve H. Hanke, professor de economia aplicada na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, e um dos grandes especialistas do mundo no assunto, ocorreram 62 hiperinflações no mundo, nas quais a taxa mensal ultrapassou os 50% ao mês (nós incluídos nessa turma). As mais terríveis foram na Hungria do pós-guerra, quando os preços dobravam a cada quinze horas, e no Zimbábue, de 2007 a 2008, quando isso acontecia a cada 24 horas. A mais clássica, porém, foi a da Alemanha no período entreguerras. O marco alemão, que valia 25 centavos de dólar em 1914, chegou a ser cotado a 4,2 trilhões por dólar, em 1923. No Brasil, o pior momento foi entre dezembro de 1989 e março de 1990, com os preços dobrando a cada 35 dias. Felizmente, o Plano Real acabou com essa situação. Agora, cabe ao atual governo — e por todos que ainda virão — zelar vigorosamente por essa conquista.

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