Biografia de Lula constrói narrativa histórica

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Foto: Sérgio Lima/Poder360

“Lula: Volume 1”, o 1º tomo da biografia do ex-presidente escrita pelo experiente escritor Fernando Morais, é a história da construção de um mito. Como na teoria do monomito do antropólogo americano Joseph Campbell (1904-1987), Lula da Silva enfrenta o ciclo completo da Jornada do Herói, a tragédia no qual uma pessoa comum é chamada a um desafio, refuga, é convencida a aceitar por uma figura mítica, passa por um treinamento mágico, tem a sua coragem testada, perde, se levanta, aprende com a derrota, alcança um estágio superior, enfrenta novamente a guerra e, desta vez, supera seus medos e demônios interiores para alcançar a vitória.

Inspirado pelos arquétipos junguianos, Campbell identificou o ciclo da Jornada do Herói em Prometeus, Moises, Buda, Jesus Cristo e a maioria das figuras míticas de religiões diversas. Nos anos 1970, George Lucas foi influenciado por Campbell para criar o personagem Luke Skywalker e a mitologia de “Star Wars”. Na biografia de Morais, Lula é um herói em sua jornada.

Resultado de quase 10 anos de entrevistas e pesquisas, “Lula: Volume 1” tem suas qualidades e defeitos mesclados na relação de amizade entre biógrafo e biografado. Jornalista do 1º escalão da imprensa quando Lula ainda era torneiro mecânico da fábrica Villares, Morais estava no avião cubano que levou Fidel Castro a Nicarágua, em 1980, e testemunhou o início da amizade entre os 2. Como jornalista, Morais cobriu as greves do ABC que catapultaram Lula a se tornar uma personalidade nacional. Como amigo, ele esteve no Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo, às vésperas da prisão que impediu Lula de ser candidato a presidente em 2018. A dualidade do repórter e do amigo permite ao leitor um retrato raro da intimidade de Lula, mas transforma muitas passagens em libelo.

Fernando Morais reinventou o gênero da biografia no Brasil com “Olga”, de 1985, sobre a militante comunista Olga Benário, e “Chatô, o Rei do Brasil”, de 1994, sobre o barão da imprensa Assis Chateaubriand. Com “Lula: Volume 1” o resultado é inferior.

Afirmar em tom de acusação que a biografia de Lula é lulista é ingenuidade. Todo biógrafo tem uma relação de fascínio com o seu biografado, afinal seria impossível viver anos pesquisando detalhadamente um personagem sobre o qual não se tem empatia. A tarefa extra que Morais se impôs foi contar a história de um biografado vivo. Mais grave: um candidato a presidente cuja trajetória será parte indelével da campanha de 2022. Morais não se sai bem no desafio, o mesmo que havia enfrentado ao publicar, em 2012, “Diário de um Mago”, sobre o escritor Paulo Coelho.

“É tão ruim escrever sobre uma pessoa viva que eu anuncio que essa foi a 1ª vez e é a última. Não quero mais passar pelo conflito ético que passei: temer que o que descobri e escrevi seja uma forma de trair a confiança de uma pessoa que foi tão aberta comigo”, disse Morais à época ao jornal O Globo.

Para efeitos dramáticos, o 1º volume da biografia combina e compara as duas prisões de Lula, a de 1979 pelo Regime Militar e a de 2018, pela Lava Jato. A 1ª é o ponto alto do livro, com a construção detalhada de como menino retirando vira o sindicalista que repetia “não gosto de política, nem de quem gosta de política”, vai se politizando, ganhando musculatura, conhecendo gente importante e decidindo criar um partido político a partir de uma colcha de retalhos de militantes sindicais, ativistas ligados à igreja Católica, intelectuais distantes do Partidão (o antigo PCB) e trotskistas.

Na estreia do PT nas urnas, Lula vira, aos 37 anos, candidato a governador de São Paulo. Foi um desastre. Com um discurso anticapitalista, a candidatura terminou com uma derrota histórica, o 4º lugar com 10%, com 1,1 milhão de votos contra 5,2 milhões de Franco Montoro. “A minha propaganda era assim: ‘Luiz Inácio Lula da Silva—Ex-tintureiro. Ex-engraxate. Ex-metalúrgico. Ex-dirigente sindical. Ex-preso político. Um brasileiro igualzinho a você”. Mas ninguém queria ser igual a mim, caralho! O eleitor queria ser igual ao Suplicy, que era rico, bonito, formado em economia, com pós-graduação no exterior!”, recordou às gargalhadas, anos depois.

Desanimado com a derrota, Lula estava perto de deixar a política quando se encontrou com Fidel Castro, que faz no livro o papel da figura mítica de Campbell que levanta o herói caído. “Desde que inventaram o voto, nenhum operário recebeu um milhão de votos como aconteceu com você. Você não tem o direito de abandonar a política”, disse Fidel, segundo o livro. Foi esse conselho que teria feito Lula mudar a sua trajetória e iniciar a carreira política que o levou duas vezes a ser presidente (tema prometido para o 2º volume da biografia, com lançamento previsto para 2023).

Mas se reproduz com cores e nuances o final da ditadura militar, Morais não se sai bem ao recontar a prisão de Lula em 2018. Lê-se o trecho como o de uma boa reportagem de fim de semana, mas sem o passo atrás para se contextualizar a prisão no momento histórico e as circunstâncias que geraram o antipetismo como força política. O autor reclama com uma insistência casmurra da parcialidade da cobertura da imprensa, mas a ligeireza com que trata as denúncias de corrupção nos governos petistas faz com que ele cometa os mesmos erros que indica nos veículos da grande mídia. Perde o leitor.

Enquanto o Lula dos 1970 era um personagem em construção, a biografia mostra o Lula de 2018 como um novo Nelson Mandela (1918-2013), o líder que reconstruiu a África do Sul. Quando a prisão é decretada e dezenas de militantes cercam o sindicato gritando “não se entrega”, dirigentes do PT como a presidente Gleisi Hoffmann defendem o não cumprimento da ordem judicial. É Lula quem acalma as pessoas, recusa a resistência diante da possibilidade de um confronto entre policiais e militantes, rejeita com vigor a insinuação de exílio e decide enfrentar a prisão, imaginando que a detenção duraria algumas semanas. Em algumas páginas, a impassibilidade de Lula recorda a passagem do Novo Testamento de um tranquilo Jesus acalmando os seus apóstolos depois de detido no Monte Getsemani.

Na prisão na Polícia Federal em Curitiba, o Lula do livro é simultaneamente estoico, mas movido por um sentimento de injustiça de um Conde de Monte Cristo. Comove-se com os acampados que pelos 580 dias de prisão o saudaram 3 vezes por dia para que não se sentisse sozinho, torna-se rapidamente amigo dos carcereiros, cria uma rotina de visitas de líderes espirituais e personalidades, vira um leitor voraz e escritor de milhares de cartas.

Em 26 de julho, aniversário da Revolução Cubana, recebe um pen drive com a canção feita sobre os versos do poeta José Martí. Lula, conta o livro, pôs-se a dançar o clássico cubano acompanhado de advogados e carcereiros. Ao mesmo tempo, a prisão parece funcionar como uma quaresma de reflexão para o ex-presidente. Um período para ele avaliar quem o acompanhou na queda e como ele iria buscar a revanche sobre seus algozes, o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol.

O Lula de Fernando Morais sai da prisão não em busca de vingança, mas de uma justiça quase divina contra a história. É um herói na sua jornada, que por vezes é descrito mais como um personagem do que como político de carne e osso.

SERVIÇO

Lula: Volume 1
Autor: Fernando Morais
Editora: Companhia das Letras
416 páginas
Preço: R$ 74,90

Poder 360

 

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