Enem segue opondo desiguais em prova comum a todos
Foto: Reprodução
A pandemia, o fechamento das escolas e as aulas remotas agravaram um cenário no Brasil que já era extremamente desigual na educação.
Com dificuldade no acesso à internet para assistir às aulas e a necessidade de trabalhar para ajudar a pagar as contas em casa, milhões de jovens se afastaram dos estudos e se distanciaram de alcançar o ensino superior.
Os reflexos já podem ser sentidos no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), principal porta de acesso a universidades –não só entre as públicas.
O UOL conta nesta reportagem especial o desafio de estudar para um exame quando o aluno já se vê em pé de desigualdade. Em cinco cidades pelo Brasil, estudantes falam sobre a expectativa para a prova e como se preparam.
Em São Paulo, Nova Iguaçu (RJ), Murici (AL), Manaus e São José (SC), o abismo social e educacional se agiganta, sem, contudo, fazê-los desistir. Para eles, o Enem ainda é parte de um sonho de continuar a crescer e de ter uma ascensão social.
A edição de 2021 registrou o menor número de inscritos, além da menor taxa de participantes negros e vindos de escolas públicas dos últimos anos.
Por outro lado, houve aumento no número de pagantes e de brancos. Antes mesmo de ser realizado, é considerado o Enem mais excludente e desafiador para estudantes pobres e vulneráveis.
Para Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec, os dados de 2021 “compõem o cenário da exclusão escolar” no Brasil, amplificado pelos desafios da pandemia do novo coronavírus, e são a ponta do iceberg dos problemas educacionais no país.
O Cenpec é uma organização da sociedade civil que visa reduzir desigualdades no acesso à educação.
Apenas 3,1 milhões de pessoas estão confirmadas para realizar as provas nos dias 21 e 28 de novembro. É o menor número desde 2005. Entre os participantes pardos e pretos, a diminuição foi de 52% (de mais de 3,4 milhões no ano passado para 1,6 milhão em 2021).
“Os estudantes deixaram de ver no Enem uma possibilidade de melhoria de suas vidas”, afirma Chico Soares, ex-presidente do Inep e professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Ele explica que uma “seleção como o Enem, feita dentro de uma sociedade desigual, será injusta” com grupos mais vulneráveis.
A queda no número de inscrições em relação ao ano passado também refletiu o impacto de uma decisão do MEC (Ministério da Educação). A pasta resolveu oferecer o benefício de isenção da taxa de R$ 85 apenas para quem tivesse justificado a ausência na edição de 2020.
Participantes que faltaram por medo de ser contaminados com o coronavírus não puderam contar com o benefício, mesmo com a prova tendo sido realizada no auge da segunda onda da pandemia. No estado do Amazonas e em dois municípios de Rondônia, a Justiça determinou o adiamento da prova, de janeiro para fevereiro, devido ao colapso no sistema de saúde.
Para o MEC, não era uma justificativa válida. À época, o governo federal pressionou cidades a não barrarem o exame, afirmando que não garantiria a reaplicação em todas as localidades. O Brasil já tinha até aquele mês um total de 209 mil mortos pela covid.
Só após uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), as inscrições para os faltosos foram reabertas. Ainda assim, o aumento foi de apenas 9% nas inscrições, ou ao todo 280.145.
As recentes falas do atual ministro da Educação, Milton Ribeiro, mostram que o chefe do MEC não defende a inclusão de jovens negros e pobres no ensino superior.
Para ele, “universidade deveria ser para poucos nesse sentido de ser útil à sociedade”, conforme disse ao defender os institutos federais.
Com a repercussão negativa, tentou se explicar. Mas depois afirmou ter jogado R$ 300 milhões “na lata do lixo”, porque muitos “simplesmente não compareceram na prova”.
Ele se referia ao recorde de abstenção da edição de 2020, que aconteceu em janeiro deste ano. Mas ignora que muitos não conseguiram fazer o exame por falta de espaço nas salas, já que era necessário obedecer ao distanciamento social.
Pesquisa feita pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e pelo Cenpec apontou que 5 milhões de crianças e jovens não tiveram acesso à educação no Brasil no ano passado. A exclusão educacional afetou ainda mais estudantes negros e pobres.
“Estamos presenciando o agravamento das desigualdades educacionais. Com a pandemia, corremos o risco de regredir duas décadas”, afirma Anna Helena.
Para os alunos do ensino médio, que concluíram o terceiro ano em 2020 ou estão na reta final agora, os desafios foram ampliados. Para Anna Helena, o país vive um cenário de exclusão e “cultura do fracasso escolar”, onde são naturalizadas a falta de acesso e a repetência, por exemplo.
“Não dá para naturalizar que jovens não aprendem mesmo estando dentro da escola, que sejam reprovados sucessivamente e acabem por abandonar as escolas.”
Em uma outra realidade está a estudante Tabatha Sayuri, 17. Aluna do último ano do ensino médio e do cursinho do Colégio Santa Maria, sua rotina é focada em estudar para o vestibular. “Fico na escola por período integral, de manhã com as aulas do 3º ano e à tarde com as atividades do cursinho”, conta.
Quando chega em casa, usa um tempo livre para fazer exercício físico. Aos fins de semana descansa, mas não deixa de fazer exercícios práticos de provas feitas nos anos anteriores. “No Santa, as aulas para o 3º ano vão até outubro, então temos o mês de novembro, esse finalzinho, para focar ainda mais no vestibular”, explica a estudante.
No começo de 2020, ela retornou para as aulas presenciais. Uma semana na escola e outras duas no ensino remoto. O colégio oferecia aulas por uma plataforma do Google. Tabatha não teve problemas quanto a internet e equipamentos. Em agosto, ela passou a ter aulas presenciais todos os dias.
“Nessa reta final estou tentando manter a tranquilidade e sem me desesperar. Penso que todo esforço que tive não será jogado no lixo e não preciso me estressar”, explica. Ela pretende usar a nota do Enem para conseguir uma vaga em fisioterapia.
Diz reconhecer ter mais privilégios que seus concorrentes.
Tem gente que se esforça o triplo do que eu, trabalha, cuida da casa, da família e ainda estuda. Merecia muito mais uma vaga na universidade. Infelizmente, não é uma competição igualitária.”
Tabatha Sayuri, estudante
Desde o ano passado, os especialistas criticam a ausência do MEC e a falta de um plano de atuação para evitar maiores tragédias na educação.
“Não tivemos uma estratégia nacional clara. Criar alianças é função do governo federal. Quando clamamos por mais coordenação, estamos apenas pedindo para que a Lei de Diretrizes e Bases seja cumprida”, diz Chico Soares.
Para a presidente do Cenpec, o governo federal deveria ter “planejado campanhas de motivações, além de ter apoiado tecnicamente e financeiramente os municípios”.
Chico Soares vê como desafio para 2022 a evasão escolar. “Não tem ninguém olhando pela criança, que aos 13 anos abandonou a escola no ano passado ou neste ano.”
Conheça os desafios enfrentados por 5 estudantes da escola pública na preparação para o Enem, principal porta de acesso ao ensino superior
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