Marinha nega heroísmo de almirante negro que acabou com castigos físicos

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Foto: Creative Commons

“A Marinha me pediu que eu pedisse vistas, que ela me traria vários argumentos e documentos que eu não conheço”, explicou o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), por videoconferência, em uma sessão da Comissão de Cultura, Educação e Lazer do Senado. Na ocasião, no começo de outubro, era discutido o projeto de lei que propunha inserir o nome de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata (1910), no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.

Duas semanas depois, em 28 de outubro, o senador deu voto favorável à proposta, aprovada por unanimidade na comissão, mas pediu licença para ler a nota enviada pela Marinha.

Nela, é defendida uma posição expressa há anos: a Marinha cita quebra de hierarquia e disciplina e diz não considerar o movimento —que teve cerca de 2.300 marinheiros amotinados pelo fim do castigo físico— “ato de bravura” ou de “caráter humanitário”.

A nota fala das ameaças de bombardeio à cidade do Rio e afirma que vidas foram sacrificadas, incluindo duas crianças, atingidas por projétil —historiadores dizem que os marinheiros juntaram dinheiro para ajudar as famílias delas.

A Marinha diz ainda não considerar que os castigos físicos estivessem corretos, mas salienta que reconhecer erros não justifica avalizar outros, citando a exaltação das ações dos revoltosos como exemplo.

​Caso o projeto avance na Câmara dos Deputados e seja sancionado, será a conclusão de mais de uma década de tentativas de reconhecer o “Almirante Negro”, oficialmente, entre os nomes da história nacional.

Para que um nome seja gravado no Livro de Aço é preciso que uma lei ordinária seja aprovada nas duas Casas, por maioria simples, e sancionada pela Presidência da República. O livro tem hoje 49 nomes inscritos e outros 9 já aprovados —os mais recentes foram inseridos em 2018.

Relator do projeto na comissão do Senado, Paulo Paim (PT-RS) foi também o primeiro a propor o reconhecimento de João Cândido na Casa, por meio de um projeto de lei que acabou arquivado na Câmara. O atual é de autoria do ex-senador Lindbergh Farias (PT-RJ).

Ao ver a comissão aprovando, em setembro, a homenagem a Alberto Mendes Jr., tido como herói e patrono da Polícia Militar de São Paulo, ele diz que aproveitou para trazer a proposta sobre o marinheiro de volta à pauta.

“Se a Marinha tivesse pressionado senadores, não tenha dúvida que não teria essa votação unânime. Quando fui para a votação, tinha dúvidas se íamos conseguir aprovar”, diz Paim. “Se a Marinha jogasse pesado, o projeto não seria aprovado. Eu não tenho dúvida”.

A Marinha não respondeu às perguntas enviadas pela Folha.

Paim propôs reconhecer João Cândido como herói nacional em 2007, um ano antes de o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionar o projeto de Marina Silva (na época, PT-AC), que concedeu anistia póstuma a ele e aos outros marinheiros da revolta.

O trecho que garantia todos os efeitos da anistia, citando promoções que os anistiados teriam tido direito caso tivessem seguidos no serviço ativo e pensão por morte, foi vetado. A justificativa do governo foi o impacto orçamentário que geraria para a União.

Na época da revolta, a anistia foi aprovada por unanimidade no Congresso, mesmo assim, marinheiros foram presos, outros expulsos da Marinha, alguns fuzilados. O próprio João Cândido foi expulso, preso, morreu pobre anos depois e nunca foi promovido a almirante, apesar de ter sido chamado assim pela imprensa e pela população da época.

“Foi uma batalha enorme para fazer essa aprovação, e a razão é sempre de natureza política e ideológica”, diz Marina. “Essa visão reacionária está dentro do Congresso desde sempre”, afirma.

“Os atos de reparação por parte do Estado quando se comete erros, crimes, danos são previstos na lei. É justo que, da mesma forma que haja atos de reparação em relação às vítimas da ditadura militar, nesse caso também haja ato de reparação para os familiares”, avalia.

Ainda em 2008, Lula inaugurou uma estátua de João Cândido no Rio, em um evento sem a Marinha ou representante do Ministério da Defesa. “Precisamos aprender a transformar os nossos mortos em heróis”, declarou. À Folha a Marinha afirmou que não reconhecia heroísmo no movimento, mas não se opunha à estátua.

“Como os rebeldes deixaram claro, tratava-se de uma revolta contra o uso de castigos físicos, contra as condições de trabalho e os baixos salários. Embora proibida pela Constituição, legislação paralela permitia a continuação das chibatadas na Marinha (no Exército, usavam-se as espadeiradas) e isto 22 anos depois da abolição da escravidão”, aponta o historiador José Murilo de Carvalho.

“Na expressão usada pelos rebeldes, queriam uma Armada de cidadãos, não uma fazenda de escravos. A Marinha tinha tido tempo mais que suficiente para fazer as mudanças exigidas pelas novas tecnologias no recrutamento de praças, no treinamento de praças e oficiais, já adotadas em outras Marinhas e não o fez. Tínhamos os melhores encouraçados do mundo numa organização totalmente defasada”.

Assessor de Marina na época do projeto de lei, Erlando Melo conta que, tentando entender as dificuldades para a pauta avançar, ouviu de outros assessores petistas que a Marinha tinha objeções a ela. ​”Lá na Câmara, no Salão Verde, conversei com um assessor da Marinha, que não lembro do nome, e ele me externou a divergência deles com o que foi publicado nos livros de história sobre a Revolta da Chibata”, lembra.

Mais de uma década depois, o deputado federal Chico D’Angelo (PDT-RJ), autor de um projeto semelhante ao aprovado no Senado, diz que recebeu duas vezes em seu gabinete pessoas da Marinha, contando sobre a história da corporação, depois de ter apresentado a proposta, em 2019.

“Eram pessoas com uniforme da Marinha, tinham um papel muito educado, conheciam a história do João Cândido, mas pediam que eu retirasse o projeto em função da quebra de hierarquia”, diz ele.

“Eu sei a importância da Marinha, mas são coisas distintas. A história do João Cândido é muito importante para a história do Brasil.”

Pouco depois de a proposta começar a tramitar, o então presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), apresentou requerimento para que o projeto fosse examinado na sua comissão —o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) fez solicitação semelhante no Senado, retirada depois.

O texto do pedido diz que “a matéria está claramente inserida no campo temático” da comissão. “Cabe destacar que o projeto de lei nada menciona sobre a subversão da hierarquia e da disciplina militares, dos assassinatos cometidos em pleno navio na cidade do Rio de Janeiro, vitimando inclusive crianças. Portanto, reconhecer erros não justifica avalizar outros, exaltando as ações dos revoltosos”, segue.

Com o projeto parado desde então, porém, D’Angelo pediu à presidência que o texto voltasse à Comissão de Cultura, onde tradicionalmente tramitam propostas do tipo. “A expectativa é que na Comissão de Cultura a gente aprove isso, como foi aprovado o Senado”, diz ele.

Longe do Congresso Nacional, João Cândido é reconhecido como herói estadual no Rio de Janeiro, e municipal em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, onde morou a maior parte da vida, e, desde agosto, em Encruzilhada do Sul (RS), sua terra natal.

“Foi muito bem aceito aqui, inclusive pelos movimentos negros do nosso município, que sempre lutaram pelo reconhecimento do João Cândido”, diz o vereador Adriano Horna (Republicanos), autor da proposta no município gaúcho de 26 mil habitantes.

O projeto aprovado na comissão agora segue para análise na Câmara, já que o prazo para recurso no Senado se encerrou no último dia 10.

“O que aconteceu há 110 anos não pode ser motivo, com a evolução dos tempos, de não reconhecer a bravura da história dele. Zumbi mesmo se levantou contra o poder da época, foi morto e está nos Heróis da Pátria, Tiradentes também”, diz Paim.

“Se houve um erro naquela época —como houve, a Marinha reconhece que houve exagero— se tudo isso é verdadeiro, não há motivo de não dar a justiça pós-morte a alguém que já foi anistiado, homenageado.”

Folha de S. Paulo

 

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