Evangélicos de esquerda criticam deboche de encenação religiosa de Michelle

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Foto: Reprodução

Eventuais zombarias com o momento em que a primeira-dama Michelle Bolsonaro falou em línguas após descobrir que o pastor André Mendonça fora chancelado como ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) são “lamentáveis” e uma “perda de tempo”. Isso nas palavras de evangélicos progressistas com quem a Folha conversou após a ampla repercussão que o episódio ganhou.

Todos foram unânimes em condenar a proximidade entre a esposa do presidente Jair Bolsonaro e o novo membro da corte suprema do país. O jeito certo de tecer essa crítica, contudo, não é ridicularizando o dom de línguas, uma crença abraçada por milhões de brasileiros pentecostais, diz Nilza Valéria Zacarias, coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, de oposição ao governo Bolsonaro.

“Caso tenha havido zombarias de algumas pessoas, eu vou lamentar, da mesma forma que lamentei quando todos tiravam onda do ‘Jesus na goiabeira’ da Damares”, afirma.

Refere-se à chacota que parte da esquerda fez após saber que a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), ponta de lança da ala ideológica bolsonarista, contou ter visto Jesus no pé de uma goiabeira. Era uma criança decidida a tomar veneno para se matar, após abusos sexuais cometidos por pastores, e desistiu depois da aparição, conforme compartilhou. A troça com esse trauma na vida de Damares rendeu até marchinha carnavalesca na época.

“Esse tipo de troca de farpas, através do que seria o humor, na verdade acirra cada vez mais essa polarização que a gente está vivendo”, diz Zacarias.

“Se algum evangélico do campo progressista faz isso, acho que está muito mais preocupado em lacrar, em mostrar que está antenado nas coisas, do que em fazer a disputa de narrativas. E não tem disputa de narrativas com essa brincadeira [com a primeira-dama]. É preciso sobretudo respeitar a fé dos mais pobres, da grande maioria da população, para a qual o dom de línguas é uma manifestação honesta do Espírito Santo.”

Ela, contudo, ressalta que viu “jogo de cena” na reação de Michelle. “A gente percebe claramente a manifestação do tentar agradar a todo custo a grande massa evangélica, colocando Mendonça como presente de Deus para a nação. Acho que estão comemorando o fato de Mendonça ser um presente pra eles. Espero que ele não se preste a esse papel.”

“A fé não tem ideologia, não é de esquerda, centro ou direita”, afirma a senadora evangélica Eliziane Gama (Cidadania-MA), que se destacou na CPI da Covid como oposição ao bolsonarismo. “Como em qualquer outra religião, os evangélicos têm suas crenças, louvores, sua forma de reverenciar Deus. Menosprezar um ato de fé é intolerância, preconceito e discriminação.”

Relatora no Senado da indicação de Mendonça, Gama diz que “toda essa celeuma foi criada pelo próprio presidente da República, que fez questão de associar o ‘terrivelmente’ a uma pessoa do credo evangélico”.

Para o ex-deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), o gesto de Michelle “é a expressão de fé dela, tomada pelo Espírito, na crença à qual aderiu.”

“Deve ser respeitada como os que, nas religiões de origem afro, ‘recebem os santos’”, diz o psolista, que se define como um católico recebido na comunhão anglicana, e “cada vez mais ecumênico”.

“Sem essa de negar ou tripudiar sobre o que estranhamos ou não entendemos. Tamanhos êxtases, louvores e aleluias por uma indicação ao Supremo, aí sim, podem comportar crítica: o Estado é laico, e ministro algum está lá para representar segmento confessional A, B ou C. Suponho que Deus não se meteu na escolha, como não torceu para qualquer time ser campeão da Libertadores…”

Referência para evangélicos de esquerda, o pastor Ariovaldo Ramos lembra que, para pentecostais, a glossolalia (falar em línguas estranhas) é o principal dom, porque prova que alguém foi batizado com o Espírito Santo. “Portanto, tem uma certa sacralidade. Qualquer aparente desrespeito tem implicações de ataque à fé.”

Mas isso, segundo Ramos, “não muda o fato de que a primeira-dama não deveria ter manifestado tal carisma por respeito ao Estado laico”.

O pastor Valdemar Figueredo, do Instituto de Estudos da Religião, diz que alguém achar “feio, belo, bonito, de bom gosto, de mau gosto” o que Michelle fez não deveria ser o centro da contenda.

A comemoração aconteceu dentro do gabinete de um senador, fora do expediente dele, numa situação que não necessariamente foi planejada para vazar, diz. “Como uma pessoa reage no espaço privado a uma notícia pode até ser algo que desperte curiosidade. Daí a merecer um debate nacional, acho uma grande perda de tempo. A experiência do privado não é algo que vá ferir os princípios fundamentais do Estado laico.”

Muito mais grave é o que aconteceu no plenário do Senado, onde se formou maioria para aprovar a nomeação do “terrivelmente evangélico” escolhido de Bolsonaro para o STF, afirma Figueredo.

Zé Barbosa Júnior, pastor ligado ao PT que em 2020 produziu o curso “Cristo e o Socialismo – Uma União pra Lá de Possível”, diz não ver problema algum se “Michelle ora, pula, fala em línguas, rodopia. É a expressão da fé pentecostal e, como tal, deve ser respeitada”.

Só não é legal “isso ser feito comemorando uma vitória da política mais baixa e perversa da nossa história”, diz. Vale também para “orações formais de batistas e presbiterianos” que também enalteceram a vitória de Mendonça, continua.

Reações jocosas que se seguiram à viralização do vídeo viraram munição para pastores bolsonaristas, que passaram a colar na esquerda uma pecha que ela dedica ao grupo: a de intolerante. A própria primeira-dama se manifestou sobre o tema.

Em resposta ao pastor André Valadão, que numa rede social a parabenizou “por expressar alegria, fé e como fluir no Espírito Santo”, Michelle disse que “este momento não era para ter vazado”.

“O pastor que estava presente pediu para não postar nada sobre o momento, pois poderia gerar polêmica naqueles que não entendem o espiritual. O meu Deus será glorificado em todo tempo. A minha vida é d’Ele, eu vivo por Ele. Amém, igreja???”

Ela já havia recorrido às redes para dizer que se sentiu alvo de “intolerância religiosa” e “desamor” após vazarem imagens de sua comemoração no gabinete do senador Luiz do Carmo (MDB-GO), onde Mendonça aguardava com aliados o resultado da votação sobre sua indicação para o STF.

O debate sobre religiosidade e política vai longe. Está presente na discussão sobre a ostentação de um crucifixo no plenário do STF, por exemplo. Seria inconstitucional por violar a separação entre o Estado e a igreja? (Vale lembrar que é um símbolo católico, não evangélico.)

A petista Benedita da Silva tem assento nessa história. Em polo oposto ao da maioria direitista da bancada evangélica, ela às vezes vai aos cultos semanais que o bloco realiza no Congresso. Benedita já contou à Folha que a iniciativa de puxar orações numa Casa Legislativa partiu dela, em seu primeiro mandato, como vereadora do Rio, em 1983.

Segundo sua assessoria, Benedita não comentaria o episódio com Michelle por estar em agenda médica.

Em 2011, o Estado de Minas publicou uma reportagem sobre como, desde os tempos de Juscelino Kubitschek, políticos recorrem a mães e pais de santo em busca de proteção. “No Planalto, fiz todo mundo cantar para Xangô”, disse então a mãe de santo Railda Rocha Pitta, representante do terreiro de Mãe Menininha do Gantois, importante candomblecistas do país. Railda se referia à gestão de Lula (PT).

Em 2020, o Palácio do Planalto, sob comando de Bolsonaro, removeu “Orixás”, quadro de Djanira, de seu Salão Nobre. A pintura retrata três divindades de religiões afrobrasileiras.

Em compensação, não faltaram visitas de pastores à sede do Executivo desde que Bolsonaro chegou ao poder. Elas aconteciam em governos anteriores, mas se intensificaram na temporada bolsonarista. Orações e “aleluias” viraram uma trilha sonora comum no palácio presidencial.

Folha  

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