Instabilidade política permeia América Latina

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Foto: Reprodução

Um extremista será eleito, daqui a duas semanas, presidente do Chile, país que foi por três décadas um paradigma de desenvolvimento econômico e estabilidade política na América Latina. Será um momento simbólico no processo de desorganização política da região, que começou em 2015 e vem se agravando.

A América Latina nunca foi politicamente estável. Golpes, ditaduras, assassinatos, caudilhismo, populismo e corrupção marcam a história da região. A palavra “golpe” (idêntica em português e espanhol) é frequentemente usada em outros países, numa contribuição latino-americana ao vocabulário político global.

Eleição de extremista no Chile será um marco dessa onda

Mas a região viveu um momento de estabilidade e até euforia política a partir dos anos 90, à medida que muitos países foram se redemocratizando. Os processos foram diferentes, cada país teve suas particularidades. Mas parecia que, aos poucos, o cenário político e institucional latino-americano ia amadurecendo e se assentando.

Hoje é cada vez mais claro que a América Latina viveu um breve período de estabilidade política induzido do exterior, financiado pelo chamado superciclo de commodities. Os preços crescentes, a partir do ano 2000, de produtos de exportação como minério de ferro, cobre, soja e petróleo, puxados pela demanda chinesa, ajudaram a financiar de investimentos a programas sociais. Isso gerou as condições sócio-econômicas que favoreceram a estabilidade política. Permitiram também a compra sem precedentes de apoio político pelos governos.

Esse ciclo de preços altos das commodities, no entanto, recuou rapidamente a partir de 2014. Crescimento econômico e arrecadação começaram a cair na região. Os governos então tiveram de apertar os cintos, num momento de pressão social por mais e melhores serviços. A entropia voltou a aumentar.

Ainda em 2014, as três eleições presidenciais realizadas na América do Sul (Brasil, Colômbia e Uruguai) resultaram em vitórias governistas. Foi o ato final desse período de estabilidade política. Desde então, apenas dois governistas se elegeram (no Equador, em 2017, e no Paraguai, em 2018), e mesmo assim em situações muito particulares. Um oposicionista será eleito no Chile, em 19 de dezembro, e possivelmente na Colômbia, em maio de 2022. Isso é um péssimo presságio para as pretensões de reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

Essa onda de instabilidade parece não ter uma clara coloração política. Governos de direita e de esquerda estão sendo castigados por eleitores insatisfeitos. O governo do kirchnertista Alberto Fernández acabou de ser derrotado nas eleições para o Congresso na Argentina.

No caso do Chile, o liberal Sebastián Piñera deixa o cargo com a pior taxa de aprovação de um presidente desde o fim da ditadura Pinochet. Isso apesar de o país ter sido o primeiro da região a aplicar vacinas contra a covid-19, um mês antes do Brasil, e ter a melhor taxa de vacinação regional. Além disso, a economia chilena deve crescer perto de 12% neste ano, recuperando-se com ampla margem da queda de 6% no ano passado.

Piñera será substituído no cargo ou por José Antonio Kast, de 55 anos, um neopinochetista de extrema-direita, ou por Gabriel Boric, de 35 anos, ex-líder estudantil de extrema-esquerda, que disputam o segundo turno.. Será algo inédito na história recente do país. Por 30 anos, o sistema político chileno evitou o extremismo e elegeu líderes moderados, de centro-esquerda ou centro-direita. Agora, os candidatos desses partidos centristas, que governaram nessas três décadas, obtiveram juntos só 20% dos votos.

Os programas de Kast e Boric estão recheados de propostas irrealistas e que dificilmente serão aprovadas, já que nenhum deles terá maioria no Congresso chileno. Kast propõe, por exemplo, uma ampla redução de impostos, sem mostrar cálculos de como financiar isso nem levar em consideração que há uma Assembleia Constituinte em andamento no Chile e que a nova Constituição deve impor mais, e não menos gastos ao Estado. Já Boric promete coisas como a estatização de várias atividades, alta de impostos e elevar a cobrança de royalties de empresas de mineração.

Kast defende regularmente o regime militar do general Pinochet. Já Boric até pouco tempo atrás dizia não acreditar nos partidos nem na democracia representativa.

Quem quer que seja eleito terá muita dificuldade para governar. Além da falta de apoio no Congresso e na Constituinte, Kast enfrentaria o risco de uma nova onda de protestos, como a que abalou o governo Piñera em 2019; já Boric teria contra si a oposição de toda a elite econômica chilena.

No Equador e no Peru, presidentes recém-eleitos, com poucos meses de governo, já enfrentam forte oposição, descontentamento e queda de popularidade. O liberal Guillermo Lasso, que está sendo investigado por investimentos offshore não declarados, colocou o Equador sob estado de emergência e sancionou um importante pacote de reforma fiscal sem aprovação do Congresso. O esquerdista Pedro Castillo já é alvo de pedido de impeachment no Peru e lidera um governo semiparalisado. Desde começo de 2018, o país teve cinco presidentes.

A covid-19 piorou ainda mais o quadro social e econômico na América Latina, que vinha se deteriorando. A região é a que teve mais mortes na pandemia. Agora, é a que mais sofre com a alta global da inflação. Pobreza e desigualdade estão em alta. Até a fome voltou a níveis de 20 anos atrás, segundo informou a FAO nesta semana. Essa deterioração, por sua vez, agrava a instabilidade política, num círculo vicioso.

Nesse cenário, cresce o apelo e o risco do autoritarismo. Além de Cuba e da Venezuela, países da América Central, como Nicarágua (onde Daniel Ortega foi reeleito presidente após afastar e/ou prender os seus principais adversários), El Salvador e Guatemala parecem rumar para modelos autoritários.

Sem um novo superciclo de commodities à vista, a América Latina tem o imenso desafio é criar por conta própria as condições sociais e econômicas internas que propiciem a estabilidade política. O cenário eleitoral desolador no Chile parece indicar que, por enquanto, não há um caminho claro para isso. Parece haver ainda muito túnel antes da luz.

Valor Econômico

 

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