Modelo espanhol reescreve lei trabalhista para devolver direitos

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Foto: Ricardo Stuckert

No começo de 2012, o então presidente da Espanha, Mariano Rajoy, deixou escapar que a reforma trabalhista que seu governo proporia dali a alguns meses lhe custaria “uma greve geral”. O sincericídio foi antes de uma reunião do Conselho Europeu, em Bruxelas – Rajoy não notou um microfone ligado. A reforma trabalhista era apenas uma de um conjunto de medidas de austeridade exigidas pela União Europeia em troca da ajuda a um país endividado e com altíssima taxa de desemprego.

Agora, quase dez anos depois, a legislação trabalhista espanhola volta a ser tema de debate no Brasil, com a aprovação, em dezembro último, da “contrarreforma” liderada pelo governo do presidente Pedro Sánchez, do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE).

Trata-se de uma nova lei, e não apenas simples revogação da reforma de Rajoy. O texto em vigor tem cinco artigos principais, e ocupa 54 páginas do equivalente espanhol ao Diário Oficial brasileiro. Não foi mera “canetada”: as negociações duraram nove meses e envolveram representantes dos sindicatos e dos patrões, em tratativas comandadas pela ministra do Trabalho, Yolanda Díaz Pérez. O objetivo central é atacar uma das mazelas do mercado laboral espanhol: o excesso de trabalhadores temporários, e daquilo que os espanhóis chamam de “contratos basura” ou “contratos lixo”, em português.

A taxa de trabalhadores temporários na Espanha é hoje de quase 25%, a mais alta do continente. E chega a 35% nas regiões menos desenvolvidas do país ibérico, como a Estremadura, no oeste, segundo dados do Eurostat (escritório de estatísticas da União Europeia). A reforma de Pedro Sánchez e Yolanda Díaz acaba com o contrato por serviço determinado, considerado responsável pela epidemia de temporários. O trabalho eventual continuará existindo, mas somente em casos específicos (como a substituição de um efetivo, por exemplo).

O texto traz também novas regras para o setor de construção civil (onde estão hoje grande parte dos trabalhadores contratados por tarefa); para as atividades agrícolas, que costumam empregar trabalhadores sazonais, amiúde imigrantes, durante as colheitas; e para os estágios profissionais, onde se concentram os “contratos basura” de que se ressentem os jovens espanhóis. Há ainda novas regras para o lay-off (suspensão temporária do contrato) e multas mais pesadas para tentar desencorajar o uso fraudulento dos contratos temporários, entre outras mudanças.

No agregado, as medidas tentam atender às demandas de uma geração de jovens espanhóis que sofrem com a (relativa) falta de dinamismo da economia local, que resulta em poucos empregos, salários baixos e contratos ruins para muitos. A má situação leva um grande volume de espanhóis a deixar o país em busca de trabalho nos vizinhos mais prósperos do outro lado dos Pirineus, principalmente na Alemanha.

Na Espanha, muitos millennials (pessoas nascidas do começo dos anos 1980 até o início dos anos 2000) são também “mileuristas”: jovens com ensino superior, conhecimento de línguas estrangeiras e até pós-graduação, mas que não conseguem ganhar mais de mil euros por mês (R$ 6,3 mil, no câmbio atual). Muitos são eleitores do PSOE e do esquerdista Podemos, que integra a coalizão de governo – este surgiu, em parte, como uma resposta ao programa de austeridade implementado pelo Partido Popular (conservador) de Mariano Rajoy.

No Brasil, a mudança foi saudada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que discutiu virtualmente o assunto com políticos do partido de Sánchez nesta terça-feira, dia 11. Para o PT, a nova lei espanhola pode servir de exemplo ao Brasil, e Lula fala em rever no próximo governo a reforma trabalhista do governo de Michel Temer (MDB), aprovada em 2017. Entre outras coisas, a reforma de Temer acabou com a contribuição compulsória aos sindicatos, esvaziando financeiramente as centrais sindicais, tradicional base política do petismo.

Por aqui, um salário de “mileurista” é o sonho de muitos. Levantamento recente da consultoria IDados, com base em informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), mostrou que quase metade dos trabalhadores brasileiros está em empregos precários, com salários baixos. É o maior percentual desde 2016. Ou seja: a explosão de novas vagas, prometida pela gestão Temer à época, não se concretizou. Por outro lado, a quantidade de processos trabalhistas diminuiu significativamente (32% até 2020, segundo o Tribunal Superior do Trabalho).

É difícil avaliar qual poderia ter sido o impacto da reforma sem o desastre da pandemia de covid-19, que podou o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em quase 4% em 2020. Uma coisa, porém, é certa: sem crescimento econômico, não há mudança nas regras trabalhistas que seja capaz, por si só, de gerar bons empregos para os brasileiros. De 2011 a 2020, a economia brasileira cresceu em média apenas 0,26% por ano – inviabilizando, na prática, a melhora nas condições de vida da população.

Confira os principais pontos da contrarreforma espanhola:
Agora revisado, o antigo modelo espanhol foi considerado uma espécie de base para a proposta votada no Brasil, em 2017, no governo de Michel Temer.

As novas regras trabalhistas da Espanha entraram em vigor em 28 de dezembro de 2021 por meio de um ‘Real decreto-ley’, similar à medida provisória brasileira, após longa negociação com diversos setores. Agora, o Parlamento espanhol tem de aprovar ou rejeitar o texto em prazo pré-determinado, de 30 dias a partir da publicação.

O modelo de contrato por obra e serviço foi abolido. Esse tipo de acordo foi criticado por manter boa parte dos trabalhadores no esquema de temporalidade — isto é, sem emprego fixo. Com a revisão na Espanha, somente duas formas de contrato temporário serão permitidas: o estrutural, isto é, por circunstâncias de produção, com duração máxima de seis meses; e por substituição de outro trabalhador.

Funcionários que hoje possuem contratos por obra e serviço, como os que trabalham no setor da construção civil, deverão migrar para o de tempo indefinido. Nesses casos, o empregador terá a obrigação de realocar o empregado para outro serviço após o término do primeiro, para o qual ele foi recrutado. Se essa garantia não for cumprida, o contrato será desfeito e a empresa terá de pagar uma indenização. Empresas que forem identificadas fazendo uso indiscriminado dos contratos temporários previstos por lei também sofrerão sanções.

O governo espanhol busca fortalecer uma alternativa aos contratos de temporalidade conhecida como “contratos fixos descontínuos”. Nesse modelo, o trabalhador é contratado para compor o quadro da empresa integralmente, mas só desempenha funções em determinadas épocas do ano, conforme apareçam demandas sazonais. Ele não recebe durante o período em que está parado, mas passa a ter acesso com mais facilidade às proteções trabalhistas garantidas pelo contrato fixo, como seguro desemprego.

Embora tenha alterado normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a reforma aprovada no Brasil em 2017, nos moldes da espanhola, não modificou direitos previstos na Constituição de 1988.

A Constituição brasileira prevê, para os trabalhadores, uma série de direitos essenciais. Entre eles estão o seguro-desemprego, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o salário mínimo, o piso salarial, o décimo-terceiro salário, o descanso semanal remunerado, férias, horas extras, entre outros.

Acordos coletivos com sindicatos passaram a prevalecer sobre a legislação. Isso significa que o que for combinado entre empresa e funcionário não pode ser vetado pela lei, desde que respeitados os direitos constitucionais citados acima;

O pagamento de parte do salário aos sindicatos, equivalente a um dia trabalhado, deixou de ser obrigatório;

A jornada de trabalho, antes fixa em 8 horas diárias e até 44 horas semanais, passou a poder ser cumprida em 12 horas de trabalho e 36 horas de descanso, respeitado o limite constitucional de 220 horas mensais;

As férias, antes de 30 dias corridos, passaram a poder ser divididas em até três períodos;

Rescisões de contrato, que antes precisavam ser homologadas pelo sindicato ou pelo Ministério do Trabalho, agora podem ser formalizadas diretamente pelo empregador;

A reforma brasileira também formalizou o home office, que antes não era previsto na legislação.

Estadão 

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