Tráfico e milícias controlam comércio de gás de cozinha no Rio

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Foto: Divulgação/O Globo

Em um dos tentáculos do crime organizado no Rio, até 80% do mercado de botijões de gás de cozinha estão nas mãos de milicianos e traficantes, segundo a Associação Brasileira dos Revendores de GLP (Asmirg). É diante dessa realidade que tanto o governo federal quanto o estadual lançaram recentemente programas para ajudar a população mais vulnerável a comprar esse item tão básico do cotidiano. E uma encruzilhada se impõe: o temor de que o alívio no orçamento das famílias acabe, no fim da linha, alimentando indiretamente os caixas das quadrilhas que controlam o negócio. Só com a primeira parcela do Auxílio Gás do Ministério da Cidadania, paga ao longo deste mês, entre R$ 18 milhões e R$ 20,6 milhões podem parar nos cofres de distribuidores ligados ou explorados pelos criminosos.

O problema ocorre, sobretudo, em favelas e áreas conflagradas, onde as quadrilhas agem cooptando vendedores clandestinos, impondo ágio sobre o preço normal, obrigando consumidores a pagarem mais caro pelo gás e até lavando dinheiro oriundo de outras práticas ilícitas. De acordo com a Asmirg, que reúne comerciantes do gênero de todo o país, a situação é especialmente grave na Região Metropolitana, que concentra 72,5% das famílias favorecidas pelo auxílio federal, cujo pagamento da primeira parcela vai até 31 de janeiro.

— O Rio de Janeiro virou uma realidade à parte no setor. A pessoa tem uma revenda regularizada, mas, se o funcionário atravessa a rua e faz negócio onde não deve, pode ser executado — lamenta Alexandre José Borjaili, presidente da Asmirg há 15 anos, que prossegue: — Sabemos que de 70% a 80% do mercado do estado encontram-se nessa situação. Esse cenário faz com que qualquer ação do governo tenha muita dificuldade de chegar ao consumidor final. Digo isso não só em relação ao vale-gás, mas também quando há alguma política estatal que tenta fazer controle de preços. Se é o crime que, em última instância, controla a venda, do que adianta?

No caso do Auxílio Gás federal, o objetivo é amenizar os efeitos da inflação galopante para 494.934 famílias fluminenses, que receberão R$ 52 para ajudar na compra do botijão. O benefício, que pagará um total de R$ 26 milhões a moradores do Rio nesta primeira parcela, se soma a um voucher com o mesmo fim anunciado na última semana pelo estado, destinado a áreas atendidas pelo recém-lançado projeto Cidade Integrada. Na semana passada, o governador Cláudio Castro afirmou que a proposta de fornecer um voucher, e não a quantia em espécie, tem justamente o objetivo de evitar que o dinheiro pare nas mãos do crime.

Auxílio Gás Foto: Ministério da Cidadania

Os números do setor apontam o quão lucrativos podem ser os negócios ilegais. O Rio é responsável pelo terceiro maior mercado de gás de cozinha do país, atrás apenas de São Paulo e Minas Gerais. O estado conta com 1.815 revendas varejistas devidamente autorizadas pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), responsável por fiscalizar o setor. São pouco mais de 2 milhões de botijões comercializados todos os meses, dos quais ao menos 1,4 milhão, nas contas da Asmirg, fazem parte da cadeia controlada pelo crime organizado.

A pesquisa periódica da ANP aponta que, atualmente, o preço médio do botijão de 13kg em solo fluminense é de R$ 92,31. Já investigações da Polícia Civil indicam que a taxa imposta pelos bandidos costuma ser de, no mínimo, 20% sobre o valor original, o que faz com que, nessas áreas, o produto custe ao menos R$ 110, podendo ir a R$ 120 ou R$ 130. Uma matemática que resulta em um lucro bruto mensal superior a R$ 25 milhões com a prática criminosa estado afora — valor, aliás, similar ao total a ser desembolsado pelo governo federal, no Rio, nesta primeira parcela do Auxílio Gás.

A venda dos botijões, porém, não é vantajosa para o crime apenas pelo faturamento milionário. Em abril de 2020, uma grande operação da Polícia Civil prendeu quatro suspeitos de lavarem dinheiro para uma milícia que agia em Nova Iguaçu e Seropédica, na Baixada Fluminense. O esquema envolvia revendedoras de gás e, segundo os investigadores, movimentou quase R$ 200 milhões em cinco anos. Seis meses antes, outra ação havia colocado atrás das grades Fábio Pinto dos Santos, o Fabinho São João. Chefe do tráfico nas favelas de São João e de Manguinhos, ele criou empresas de distribuição de gás no nome de parentes e as utilizava para tentar legitimar o ganho com a venda de droga.

— Eles usam uma técnica de mescla para lavar o dinheiro. Pegam recursos supostamente limpos, porque a venda de gás, mesmo que não regularizada, gera renda, e incluem no fluxo outros negócios da quadrilha. Se você olha os números a fundo, é como se a empresa comercializasse botijão para o Brasil inteiro — afirma o delegado Thiago Neves Bezerra, que participou das duas investigações e hoje comanda a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco): — Nessas regiões, a maioria das pessoas compra em espécie, não tem nota fiscal nem controle, e por isso a venda de gás é tão utilizada com esse fim.

Na última quarta-feira, em meio às primeiras operações do Cidade Integrada no Jacarezinho e na Muzema, além de outras favelas menores adjacentes, a Delegacia de Defesa de Serviços Delegados (DDSD) fechou três depósitos ilegais de gás de uma vez em Rio das Pedras, um dos maiores redutos milicianos do Rio, e prendeu sete suspeitos. Ainda no contexto do novo projeto, o governo estadual anunciou que o auxílio deverá ser utilizado apenas em distribuidores regulamentados, de modo a “cortar a fonte de renda das quadrilhas”. Questionado pelo GLOBO, o governo não comentou o domínio criminoso sobre o mercado de gás nem como pretende fazer o controle do benefício recém-criado, o que tampouco foi esclarecido na apresentação oficial do programa, no sábado.

Os dados do Ministério da Cidadania não permitem saber em que bairro vive quem está recebendo o benefício. A análise por município, porém, revela que metade das seis cidades com mais favorecidos fica justamente na Baixada Fluminense, região apontada pela polícia, ao lado da Zona Oeste, como a mais sensível à atuação de bandidos nesta seara. Segunda colocada na lista, só atrás da capital, Nova Iguaçu tem, por exemplo, 55.654 famílais aptas a receber os R$ 52, mais do que o dobro do que São Gonçalo, que tem população 32% maior e aparece duas posições abaixo, com 26.116 beneficiados.

— É uma questão endêmica, que atinge várias partes do estado, mas eu diria que 90% do problema se concentra na Baixada e na Zona Oeste. No ano passado, só a nossa delegacia interditou de cerca de 250 depósitos clandestinos, quase sempre resultando na prisão do responsável pelo local por crime contra a economia popular, que é inafiançável — diz o delegado Pedro Bittencourt, titular da DDSD, que detalha a operação criminosa: — Não é exatamente o miliciano ou traficante que vende o gás, o serviço é terceirizado. Ele se associa a um pequeno comerciante, em geral morador, que monta um depósito clandestino, sem o registro obrigatório na ANP. O bandido promete proteção e reserva de mercado, já que outros não poderão vender ali, e, como contrapartida, cobra uma taxa em cima de cada botijão. Se ele não paga, não pode operar. No fim das contas, quem mais perde é o cidadão de bem, que acaba obrigado a gastar mais, já que o preço é tabelado, sempre bem acima do praticado e sem qualquer chance de livre concorrência.

Morador da Carobinha, em Campo Grande, o porteiro X., de 42 anos, sente na pele — e no bolso — o peso do problema. Sob condição de anonimato por temer retaliações, ele conta que, em pouco mais de dois anos, viu o valor gasto com gás de cozinha disparar. Ele vive na comunidade, dominada por milicianos e palco de frequentes disputas com o tráfico, há mais de duas décadas.

— Quem mora aqui sabe há tempos como é. Só pode comprar o botijão de quem eles autorizam. Se eu trouxer um de fora e chegar empurrando, já dá problema. Hoje, não gasto menos de R$ 110 para comprar um botijão. O jeito é tentar fazer durar mais pra compensar — conta o porteiro, que vive com a esposa e três filhos em uma casa de três cômodos. A família já recebeu outros benefícios sociais, mas ainda não sabe se está na lista de favorecidos pelo Auxílio Gás federal.

De acordo com o Ministério da Cidadania, receberão os R$ 52 todos os brasileiros inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) com renda familiar mensal per capita menor ou igual a meio salário mínimo, ou famílias com integrantes que recebem o Benefício de Prestação o Continuada (BPC). O valor do pagamento bimestral é calculado a partir da média nacional do preço do botijão de 13kg de GLP, atualmente em R$ 104. Ao todo, no país, serão R$ 285 milhões distribuídos entre 5,5 milhões de famílias nesta primeira parcela.

— É um auxílio voltado para pessoas em situação de vulnerabilidade. Nessas comunidades, de modo geral, as pessoas já têm uma renda inferior do que em outros lugares, e mesmo assim pagam mais pelo gás. É uma distorção cruel, mas temos, na verdade, duas partes sendo lesadas: a de quem necessita dessa assistência e também os fundos públicos, que, em um momento de crise econômica e mesmo que não intencionalmente, vão financiar indiretamente essas quadrilhas — analisa Daniel Hirata, professor de Sociologia e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Além do problema relativo aos revendedores clandestinos, sem qualquer tipo de regulamentação junto aos órgãos responsáveis, também há situações em que distribuidoras legalizadas se aliam ao crime. Neste caso, de acordo com a ANP, os responsáveis podem perder o registro em definitivo, ficar impedidos de atuar no setor por cinco anos e receber multas que variam de R$ 5 mil a R$ 5 milhões. “Em geral, a polícia investiga, identifica e reprime os criminosos, e a ANP atua no ambiente administrativo reprimindo os agentes regulares que, comprovadamente, associam-se às atividades criminosas”, explicou, por nota, a agência, acrescentando que realizou 94 ações de fiscalização em revendedores de GLP do Ro no ano passado, espalhadas por 36 municípios. Já a Ouvidoria do órgão recebeu 85 denúncias relativas a esse mercado, “sendo metade por comércio clandestino”.

— É uma área que precisa de regulamentação estatal, de fiscalização. Não se resolve só com a parte repressiva, com polícia. É o típico caso no qual uma ação eficiente do poder público garantiria não só um preço justo para a população, mas também ajudaria a desmonetizar esses grupos armados, porque impacta diretamente nas bases financeiras — pontua o professor da Daniel Hirata.

O início da exploração da venda dos botijões de gás remonta à expansão das milícias na cidade do Rio, na virada dos anos 2000. Tal qual faziam com outros serviços básicos, como o sinal de televisão e a internet, os paramilitares passaram a controlar o setor a mão de ferro, exercendo monopólio quase total em suas áreas de atuação. De lá pra cá, contudo, o mesmo modus operandi foi adotado por traficantes de diversas regiões.

Um dos primeiros a empregar essa tática foi Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, morto pela polícia em 2019, após quase duas décadas chefiando a venda de drogas em favelas da Ilha do Governador, na Zona Norte. No bairro, tanto a venda de botijões quanto a circulação de vans — outra prática com origem nas milícias — rendiam farto lucro ao criminoso.

Em 2004, investigações e informações colhidas pelo Disque-Denúncia (21 2253-1177) já apontavam que, no esteio um auxílio para compra de gás pago à época pelo governo federal, várias comunidades cariocas registravam monopólio do comércio de botijões por parte do tráfico, que impunha sobretaxas aos moradores. Além da própria Ilha do Governador, a prática foi constatada, na ocasião, em locais como Borel, Salgueiro, Mangueira, Manguinhos, Vidigal, Rocinha e nos complexos da Maré e do Alemão, entre outras favelas.

O mesmo Disque-Denúncia continua recebendo, passados 18 anos, relatos frequentes sobre o problema. Foram 14 contatos do gênero junto ao serviço desde o início de 2021, dois terços relacionados à atuação do tráfico, e o restante de milícias — além de denúncias nas quais os dois grupos aparecem agindo em conluio para maximizar o faturamento. As queixas abrangem comunidades em Guaratiba, Jacarepaguá, Colégio e Bangu, todos bairros da capital, além dos municípios de Duque de Caxias, Belford Roxo e São João de Meriti, na Baixada Fluminense, e das cidades de Itaboraí e Petrópolis.

Nos últimos anos, com o aumento das ações repressivas contra os depósitos clandestinos, os grupos criminosos vêm mudando de estratégia para tentar driblar a polícia. Se antes era comum encontrar espaços com centenas de botijões armazenados, hoje as quadrilhas preferem pulverizar a atividade em distribuidores menores, mantendo vários pontos de abastecimento.

— É uma maneira de tentar diminuir o prejuízo, já que os botijões também acabam apreendidos, e não são devolvidos. Além disso, muitas vezes o responsável pelo local tenta argumentar que aqueles botijões não são para venda, mas de posse pessoal, por mais óbvia que seja a mentira — explica o delegado Pedro Bittencourt, da DDSD, lembrando também o risco inerente ao armazenamento inadequado desse tipo de material: — Existem várias exigências técnicas que um distribuidor legalizado precisa cumprir. Já tivemos casos, inclusive, de explosão nesses locais.

Procurada, a Polícia Civil reforçou os dados repassados pelo delegado da DDSD e frisou a atuação da Força-Tarefa de combate às milícias, que, de acordo com a corporação, já prendeu mais de 1.100 paramilitares. Ainda segundo o órgão, o prejuízo causado às quadrilhas com a atividade do grupo especializado, que reúne várias delegacias, é de cerca de R$ 2,2 bilhões. Já o Ministério da Cidadania não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre o tema.

A ANP, por sua vez, informou que “desconhece a fundamentação técnica e cientifica dos cálculos relativos às atividades criminosas relacionadas com o comércio de GLP”. A agência afirmou ainda que tem “preocupação constante” com “situações de irregularidades no mercado de combustíveis” e que atua “de forma direta no combate às irregularidades administrativas e em parcerias com os órgãos de segurança pública, quando há envolvimento de práticas criminosas”. “Nesse cenário”, acrescenta a ANP, “é importante estimular e valorizar a atividade regular”.

O Globo  

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