Vacinados e não-vacinados entram em conflito

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Foto: Miguel Noronha/Futura Press/Estadão Conteúdo

A polêmica atual envolvendo o tenista Novak Djokovic expôs a tensão existente em muitos países entre a maioria de pessoas vacinadas e a minoria de não vacinados. A hostilidade mútua gerou uma torcida pró e contra o sérvio. Afinal, como deve ser a política para os não vacinados? Essa questão ameaça criar mais um cisma social numa época já de fortes polarizações.

Movimentos antivacinas existem há décadas, assim como os que rejeitam os medicamentos tradicionais. Por trás disso há posições filosóficas, religiosas e desconfiança em relação aos grandes grupos farmacêuticos ou ao capitalismo em geral. Porém, a rejeição à vacina contra a covid-19 ganhou outros dois argumentos.

Polêmica envolvendo Djokovic expôs tensão elevada entre grupos

O primeiro é quanto à segurança, devido ao tempo recorde em que as vacinas foram desenvolvidas, o que poderia gerar falhas e reações adversas perigosas. Cidadãos de países com regimes autoritários, como a Rússia, também desconfiam da qualidade das vacinas locais.

Conheço o caso de um jovem saudável que teve uma reação muito grave, que médicos de um dos melhores hospitais de São Paulo atribuíram com grande probabilidade a uma vacina específica. Ele felizmente se recuperou e tomou a segunda dose, de um outro fabricante.

Essa é uma preocupação legítima, mas superestimada. O risco de morte por reação à vacina é muito menor do que o risco de morrer de covid-19. Mas, claro, jovens saudáveis, com bem menos chances de terem complicações da covid-19, podem achar esse risco desnecessário.

O outro argumento é político. Desde o início da pandemia, grupos de direita negaram ou minimizaram a gravidade da doença. Por consequência, rejeitaram medidas de combate. Alguns, como o premiê britânico Boris Johnson, recuaram dessa posição inicial e apoiaram tanto ‘lockdowns’ (quando foi preciso) como a vacinação. Outros, não.

Há ainda aqueles não se opõem à vacina, mas à obrigatoriedade de vacinação. Querem liberdade de escolha. A liberdade individual é um princípio existencial no Ocidente, ao contrário da China, por exemplo, onde o interesse individual está submetida ao interesse coletivo (que é sempre definido pelo regime, claro).

Mas mesmo no Ocidente existe um antigo e amplo debate sobre os limites da liberdade individual. Não temos a liberdade de não pagar impostos. Do mesmo modo, somos obrigados a vacinar nossos filhos contra uma série de doenças para poder matriculá-los nas escolas públicas.

Esses argumentos por vezes se confundem. Djokovic sempre foi um negacionista, mas hoje alega defender a liberdade individual (chegou a promover, durante um período de ‘lockdown’ na Europa, um torneio de tênis na Sérvia, que acabou virando foco de infecção). Já o ex-presidente Donald Trump, que se opõe à obrigatoriedade, disse ter tomado as três doses e defendeu a vacina em comício em dezembro, sendo por isso vaiado por parte de seus apoiadores.

Do outro lado, há múltiplos argumentos em favor das vacinas. Elas comprovadamente protegem contra formas graves da covid-19. Um estudo publicado nesta semana pela “New England Journal of Medicine” diz que quase 100% dos adolescentes que necessitaram de UTI por covid, em 23 Estados dos EUA pesquisados (entre 1º de julho e 25 de outubro de 2021), não eram vacinados.

É legítima também a preocupação dos vacinados de estar num ambiente fechado junto com não vacinados.

Além disso, há um custo social da não vacinação. Bolsões de não vacinados favorecem surtos da covid-19, que prejudicam uma série de atividades, afetando os vacinados. Favorecem também o surgimento de novas cepas.

Ao lotarem hospitais em surtos de covid, os não vacinados põem em risco quem precisa de atendimento por outro motivo. Se alguém tiver um AVC, pode se deparar com UTIs lotadas por pacientes de covid não vacinados. O tratamento de quem não se vacina é pago pelos contribuintes, incluindo os que se vacinaram.

Além disso, a vacinação parece induzir a uma confiança maior das pessoas em circularem, o que favorece a economia em geral.

Por fim, há o argumento moral da carona grátis. Não vacinados se beneficiam dos efeitos da vacinação, que ajuda a controlar a doença, ao mesmo tempo em que colocam em risco aqueles que se vacinaram. Se ninguém se vacinasse, haveria uma situação de restrições prolongadas, com muitíssimos casos a mais, hospitais lotados, mais mortes, mais desemprego e economia destruída. Ou seja, os não vacinados pegam uma carona sem custo com os vacinados.

Como resolver isso? O tema é extremamente complexo. A ex-premiê alemã Angela Merkel, democrata-cristã, opunha-se à obrigatoriedade de vacinação, em favor de um processo de diálogo e persuasão dos não vacinados. Já o premiê da Itália, o liberal Mario Draghi, foi o primeiro líder na Europa a obrigar os trabalhadores a se vacinarem (e agora qualquer cidadão acima de 50 anos), pois trata-se de uma emergência e não há tempo a perder.

No lugar de obrigatoriedade, alguns defendem soluções de mercado. Cingapura desde o ano passado exige que não vacinados paguem pelo seu tratamento de covid-19. De forma similar, a província de Quebec, no Canadá, cogita criar um imposto de saúde a ser cobrado dos não vacinados. Isso daria um estímulo para as pessoas se vacinarem: escapar de uma eventual punição.

Ainda que pareça justo, isso é discriminatório e possivelmente ilegal na maioria dos países. Em geral, é proibido negar assistência médica pública a um cidadão. Por analogia, isso levaria a cobrar pelo tratamentos de fumantes e pessoas obesas, que também geram custos adicionais à saúde.

É possível que, sendo a covid uma situação emergencial, com impacto social, econômico e na saúde muito mais grave do que o tabagismo, esse debate avance. Mas é politicamente difícil.

O que fazer então? A Europa parece rumar para a vacinação obrigatória, inicialmente dos adultos, com risco de protestos violentos – manifestantes contra a vacina quase invadiram o prédio do Parlamento da Bulgária na quarta-feira. Nos EUA, a Suprema Corte barrou ontem a principal iniciativa do governo de Joe Biden de vacinação obrigatória, que previa que todos os trabalhadores de empresas com mais de cem funcionários teriam de se vacinar.

O impasse expõe a enorme crise de confiança que se instalou em quase todo o mundo. O discurso racional cedeu lugar ao discurso emocional, com as pessoas entrincheiradas nas suas posições e hostis aos argumentos alheios. A liberdade individual parece ser apenas a liberdade de dizer não, e nunca a de dialogar, negociar e, eventualmente, ceder. Isso é um mau presságio para tudo.

Valor Econômico

 

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