País negro, Brasil prefere descendentes de europeus

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Foto: Rafael Martins/ Folhapress

A postura do Brasil em relação aos imigrantes negros é de repulsa, enquanto o sentimento dirigido aos europeus e americanos brancos que chegam ao país é de receptividade, diz a socióloga Vilma Reis, 52. A afirmação foi feita enquanto ela refletia sobre o assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, 24, espancado até a morte em um quiosque na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro.

“Um país que se vangloria tanto de ser aberto e comunicativo, o Brasil tem tido uma postura racista, criminalizadora e repulsiva com os imigrantes pobres. E pela história que está colocada para nós, são os nossos irmãos africanos: angolanos, congoleses e nigerianos”, diz Reis à Folha.

Moïse foi morto no último dia 24. Câmeras de segurança mostram o congolês sendo imobilizado e levando pauladas com um pedaço de madeira.

Segundo a família, ele era funcionário do quiosque Tropicália e teria ido até o local cobrar diárias atrasadas. A Justiça determinou a prisão temporária de três dos envolvidos no crime: Fábio Pirineus da Silva, Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca e Brendon Alexander Luz da Silva.

Os suspeitos afirmaram que foram intervir para proteger um colega, funcionário do Tropicália. Um deles justificou a agressividade que levou ao homicídio à raiva que estava sentido pelo fato, segundo disse, de a vítima estar incomodando clientes e trabalhadores da orla há dois dias.

Pouco mais de duas semanas depois, Durval Teófilo Filho, um homem negro de 38 anos, foi morto a tiros pelo sargento da marinha Aurélio Alves Bezerra, seu vizinho, após ser supostamente confundido com um ladrão.

À polícia, o militar disse que atirou porque viu o vizinho mexendo na mochila e pensou que seria assaltado. O autor do crime prestou socorro, levando a vítima ao Hospital Estadual Alberto Torres, mas Filho não resistiu.

As mortes mobilizaram protestos em diversas cidades do país neste sábado (5).

Reis fala que a conexão entre os dois assassinatos é o racismo, dado pela cor da pele e pelas características físicas das vítimas. “O racismo no Brasil não é um racismo de origem, é um racismo de marca. E nós, a população [negra], nós carregamos as marcas em nosso corpo.”

Militante do movimento negro e feminista negra, foi ouvidora-geral da Defensoria Pública da Bahia por dois mandatos e chegou a ser pré-candidata do PT à Prefeitura de Salvador em 2020. Acredita que o partido, se chegar à presidência da República mais uma vez, terá como prioridade a política carcerária –ponto chave para o combate ao racismo no país, segundo ela.

“O sistema prisional brasileiro é um sistema colonial atualizado de vingança. É um sistema colonial atualizado de vingança contra os negros e os empobrecidos dessa sociedade”, diz.

Por que nós podemos associar o assassinato do Moïse ao racismo? É muito importante a gente pensar uma primeira questão: como o Brasil trata as relações que a sociedade brasileira desenvolve com os imigrantes brancos, ricos, europeus e norte-americanos, e a relação que historicamente o Brasil tem desenvolvido com os africanos e mais recentemente com os latino-americanos, indígenas, pobres, haitianos e outros.

Tem sido uma relação de rechaço, de repulsa. Um país que se vangloria tanto de ser aberto e comunicativo, o Brasil tem tido uma postura racista, criminalizadora e repulsiva com os imigrantes pobres. E pela história que está colocada para nós, são os nossos irmãos africanos: angolanos, congoleses e nigerianos.

Então você concorda com a tese de que a receptividade dos brasileiros é direcionada para imigrantes brancos? Sim, porque é um comportamento das elites econômicas e políticas do país, e isso se reflete na população de forma muito absurda, principalmente nos segmentos médios da sociedade.

A classe média tem um olhar voltado para: “Ah, temos que visitar a Europa central”, os países do norte ocidental. Sempre que se pensa em um intercâmbio, se pensa na Austrália, na Nova Zelândia, nos Estados Unidos, na Inglaterra. Tem tantos países no mundo que falam inglês como a Nigéria, mas esse não é o lugar. Isso treina todo o país para uma xenofobia em relação aos imigrantes empobrecidos, quando nós deveríamos ter uma postura de solidariedade e ajuda humanitária de forma permanente.

Podemos então dizer que a xenofobia no Brasil é indissociável do racismo? Ela é indissociável do racismo.

Como nós conseguimos conectar o caso Moïse com o assassinato do Durval, morto por um militar da marinha? Eu penso que a linha que junta Moïse e Durval é muito próxima, é muito real. O Brasil é um país em que o racismo está em carne viva. Como nos dizia Oracy Nogueira, o racismo no Brasil não é um racismo de origem, é um racismo de marca. E nós, a população [negra], nós carregamos as marcas em nosso corpo. É a nossa cor, são os nossos cabelos. É importante lembrar que assim como é banalizada a vida de um jovem congolês, também é a vida dos homens negros, das juventudes negras, indígenas e ciganas.

A condição de Moïse para a condição de Durval são muito próximas do ponto de vista subjetivo e objetivo de como o racismo à brasileira trata os homens negros e toda a sua população negra.

E o que você chama de “racismo à brasileira”? O racismo à brasileira é esse racismo que não pode ser debatido. Eu não estou criando nada, eu estou lembrando de Florestan Fernandes. Ele nos disse que o Brasil tem preconceito de ter preconceito. Então qual é a grande questão do Brasil? Não se discute, há um negacionismo permanente da existência do racismo, e o racismo segue dilacerando vidas negras ininterruptamente.

Casos como esse se repetem, mas o diferencial desses dois casos é que a população teve acesso às cenas dos crimes. O que muda quando a sociedade vê como esses assassinatos ocorrem? Algum tempo atrás, o professor Silvio Almeida lembrava e o Thiago Amparo sempre lembra, que o grande impacto agora é que esse racismo é filmado e televisionado.

Cada vez mais você tem uma juventude de setores médios da sociedade, de jovens, inclusive da classe média, altamente comprometidos com o antirracismo, que não querem o projeto dos seus pais e dos seus avós. [O projeto] do silêncio e da covardia.

A sociedade do mundo popular tem tido mais mecanismos para filmar e criar provas, porque os assassinos sempre se esconderam pela situação de não ter a prova.

Cada vez mais nós precisamos encontrar mecanismos que fortaleçam a democracia. Um dos mecanismos de fortalecer a democracia é colocarmos as câmeras nas roupas dos policiais. A sociedade entendeu. As pessoas vão perder a vida mas elas vão criar a prova, porque chega. E eu acho importante esse compromisso.

As imagens das câmeras mostram que o quiosque seguia em funcionamento na hora do crime. Aparentemente um cliente foi atendido enquanto Moïse era espancado. O costume desse país é matar e humilhar pessoas negras indígenas. O costume desse país é de desumanização permanente. Portanto, para aquele cliente ali não se tratava de uma vida, pois essa imagem de um homem negro, de pele preta, é desumanizada na mentalidade corrente o tempo inteiro. Então imagine se fosse uma pessoa branca que sofresse uma agressão, o mundo pararia.

Um dos responsáveis [pelo crime] disse que estava com a consciência tranquila. Isso passa por um treinamento coletivo para desumanização. Eu penso que é importante nós politizarmos a cada morte, cada assassinato desses, de homens negros, de jovens negro. Isso é o debate da desumanização, que é o projeto que desumaniza todos nós e todas nós.

Nos últimos 20 anos, o Brasil teve governos à direita e à esquerda. Você vê esses governos, inclusive os progressistas, de fato assumindo um compromisso de enfrentamento ao racismo, à violência contra a população negra? Nós do campo dos direitos humanos, nós estamos do campo da esquerda e nós precisamos ter muita coragem para peitar o que está aí.

Acho que um dos exemplos mais emblemáticos que a gente deu foi de peitar o [então ministro da Justiça Sergio] Moro com o tal do projeto de excludente de ilicitude, o tal pacote anticrime. Nós enquanto sociedade civil e movimentos de direitos humanos derrotamos esse projeto no Congresso Nacional.

Mas nós precisamos de muita coragem para discutir a questão da legalização das drogas e a anistia com justiça racial e de gênero, com programa de acolhimento para os jovens, mulheres e homens, que estão encarcerados e encarceradas no país. Nós vamos ter que abrir as portas das cadeias.

O sistema prisional brasileiro é um sistema colonial atualizado de vingança. É um sistema colonial atualizado de vingança contra os negros e os empobrecidos dessa sociedade.

Você falou muito da questão do sistema carcerário e uma das críticas que os governos PT recebem é com relação ao crescimento da população carcerária. Em 2002, eram cerca de 240 mil presos. Em 2014, final do primeiro mandato do governo Dilma, eram cerca de 608 mil. Você acredita que isso seria prioridade do governo PT, caso ganhe as eleições presidenciais? Eu acho que esse entendimento está muito presente nas próprias falas do presidente Lula.

Na última eleição do PT se criou um setorial só para pensar na política de segurança pública, nas eleições internas. Então eu acho que há um esforço muito grande, há um entendimento e uma junção da discussão de que a política de segurança pública precisa mudar para gente responder à questão racial, para não entrarmos em contradição. Essa discussão está na ordem do dia.

Você vê os candidatos à presidência da República colocando o combate ao racismo como prioridade em seus programas de governo? Eu penso que diferente das eleições de 2018 em que nós tínhamos no primeiro turno 13 candidatos à presidência da República que não conseguiam vocalizar o debate racial, não vai ser possível qualquer tipo de indiferença à centralidade da questão racial no Brasil.

Mesmo com seus entendimentos equivocados, a direita também terá que debater, porque essa é uma realidade que está colocada no seio também das suas organizações partidárias.

Folha  

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