Russos fogem do regime de Putin

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Foto: Reprodução

Elena*, 29, russa que vive há alguns anos na Bélgica, acordou na manhã de 24 de fevereiro com a mensagem de uma amiga no WhatsApp. “A guerra começou”, escrevera a colega de Moscou, que estava no banco sacando todo o dinheiro que tinha. Elena passou o resto do dia chorando, incapaz de acreditar que seu país havia realmente invadido a Ucrânia.

Poucos dias depois, Elena recebeu a amiga em seu apartamento — refugiada, embora fosse russa, sem quaisquer direitos na Europa, ao contrário dos refugiados ucranianos.

Não se sabe o número exato, mas centenas, talvez milhares de russos têm deixado o país desde o início da guerra com medo de serem perseguidos ou por sentirem que não podem mais viver em seu país. Sentem-se sufocados.

“Não posso falar sobre política com minha família. Eles sofreram lavagem cerebral e acreditam na propaganda de Putin”, diz Elena. Seu tio chegou a lhe enviar uma notícia de uma página de notícias falsas e bem-humoradas, acreditando que o conteúdo era real — mesmo com um alerta no topo da página sobre conteúdo falso e humorístico do site.

Elena não acredita que poderá voltar para casa até que o regime caia. Enquanto isso, ajuda a amiga e vê outros conhecidos deixando a Rússia – alguns foram para a Armênia, outros para Turquia e Geórgia. Forma-se uma diáspora de refugiados russos.

Os que decidem ficar – seja com a intenção de desafiar o regime, seja por não terem meios de deixar o país – relatam um clima de medo. Qualquer pessoa que protesta – ou que critica o governo e a guerra online – pode ser presa por 15 anos. Calcula-se que mais de 15 mil russos foram detidos por protestar, desde o começo da guerra.

Para quem fica na Rússia, a realidade é de preços cada vez mais altos.

“Comida, remédios e até produtos de limpeza subiram mais de 10 vezes”, conta Katya, que vive em São Petersburgo e preferiu não dar sobrenome nem idade. Na antiga capital do Império Russo, o desânimo impera. As reações ao começo da guerra são parecidas. Tanto Elena quanto Katya choraram, em conversa com a reportagem.

“A manhã do dia 24 foi de horror, medo e lágrimas. A primeira mensagem que escrevi à família e amigos foi: ‘a Rússia invadiu a Ucrânia, [começou] a guerra’. Escrevi com lágrimas nos olhos, considerando-me uma fascista, e já na noite daquele dia saí para a rua e gritei ‘não à guerra’, até ficar rouca,” relembra Katya.

Em um piquete, pintou uma bandeira da Ucrânia no rosto e vestiu uma camisa em que se lia “Linda Rússia do futuro”. Ela teve o celular arrancado das mãos e foi levada a uma delegacia, onde foi interrogada das 22h até 1 da manhã pelo chefe do serviço federal de segurança (a temida FSB) e por um oficial da área de contra-terrorismo.

“Eles me torturaram com um interrogatório brutal, tentaram acessar meu celular para descobrir de que canais [do Telegram] eu participava. Diziam que eu era uma das organizadoras do protesto, mas não organizei nada. Ameaçaram me processar por ‘espalhar fake news’, um crime no país, se eu abrisse minha boca para defender a Ucrânia”, contou.

Pelo Telegram, Sophia*, uma operadora de câmera de Moscou, explica à reportagem que “praticamente tudo mudou” desde que a guerra começou.

“Estou incrivelmente envergonhada, porque meu país está fazendo coisas horríveis que não podem ser justificadas. É um crime terrível que não vai ser perdoado ou esquecido facilmente. É como se uma grande parte de você tivesse morrido. Você continua fazendo suas coisas em modo automático, mas não vê propósito”, explica.

Sophia trabalha majoritariamente com clientes estrangeiros, por isso enfrenta problemas, já que a Rússia se encontra sob pesadas sanções econômicas. Seu banco ainda não teve o Swift bloqueado, mas o governo bloqueou todos os pagamentos em moeda estrangeira. “Se o pagamento for feito em dólares, só posso receber em rublos. O problema é que o valor do rublo caiu e ele continua caindo a cada dia.”

Dezenas de marcas e empresas deixaram a Rússia sem perspectiva de retorno. Apesar de todas as privações e da expectativa de que tudo piore, Sophia se opõe à guerra e a Putin e não culpa o Ocidente pelo que acontece.

“Não há como encontrar nenhuma razão para que alguém queira a guerra. Parece uma boa ideia apenas nos sonhos loucos de Putin, que acabou de destruir dois países com um só golpe e continua destruindo a Ucrânia com bombas e destruiu a economia russa e nosso futuro.”

Cada vez que o presidente russo fica mais acuado, a violência policial cresce. Sophia lembra que, há 10 anos, a polícia não era tão violenta para dispersar protestos. “Agora são puro terror.”

Além disso, explica, “quando os policiais te levam para a delegacia, te humilham o máximo que podem, e há alta probabilidade de você ser espancado. Não é uma surpresa que as pessoas tenham realmente medo de protestar”.

Ao longo dos dias ela mudou de opinião várias vezes sobre o futuro. Hoje pensa que o país pode ficar numa espécie de “pântano soviético reencarnado por anos”, diz, com uma nota de pavor, mas ainda tentando manter a esperança de que o regime pode cair e as coisas podem melhorar.

Também de Moscou, mas escondido em um lugar desconhecido, o político de oposição Aleksei Miniailo, 37, conversa apressado no telefone. Nervoso, derruba o que tinha em cima da mesa enquanto digita freneticamente no computador mensagens para amigos e outros ativistas.

Ao contrário dos demais, ele pede para que seu nome seja usado – “é uma forma de me proteger, afinal sou uma pessoa pública”. Mas é difícil saber se ele terá algum tipo de proteção caso seja pego pela polícia. Historiador formado pela Universidade Estatal de Moscou, juntou-se à greve de fome de Lyubov Sobol, advogada próxima ao líder opositor Alexey Navalny, em 2019. No mesmo ano, Miniailo foi preso por dois meses, acusado de promover protestos.

Hoje, enquanto evita ser preso novamente, participa de um grupo de acadêmicos, pesquisadores, ativistas e empresários levando adiante o projeto ‘Os russos querem a guerra?’, em que analisa pesquisas de opinião de forma crítica.

“Pesquisamos a opinião pública na Rússia e a explicamos. Os números brutos são enganosos, porque em autocracias e ditaduras as pesquisas não representam realmente a opinião pública. Os números têm que ser explicados e mais hipóteses precisam ser testadas para se obter algo da pesquisa”, ele explica.

O dia a dia de Miniailo é o de tentar parar a guerra. De seu esconderijo ele conversa com pessoas, tenta persuadi-las a sacrificar sua segurança – como ele – para parar a guerra.

“A maioria das pessoas veem menos produtos nas lojas e supermercados, preços cada vez mais altos, medicamentos acabando nas farmácias. Coisas importadas estão sumindo das prateleiras”, diz ele, lembrando que os preços subiram muito mais do que o governo divulga. “Mesmo coisas muito russas, como a batata, têm subido de preço porque as sementes vêm do exterior.”

“Putin pensou que ganharia essa guerra na Ucrânia em alguns dias, mas calculou mal. O que vejo agora é mais como a guerra na Chechênia em 1994”, diz o político. Em 1996, a Chechênia conseguiu efetivamente sua independência da Rússia, perdendo-a na segunda guerra contra o país, anos depois.

Para ele, o principal problema é que a Ucrânia é o país mais próximo da Rússia — 20% dos russos têm parentes na Ucrânia. “Se não conseguimos dialogar com a Ucrânia, mas preferimos lançar foguetes, como podemos encontrar terreno comum com qualquer outro país?”.

Por isso ele se dedica a ir mais fundo nas pesquisas de opinião. Ele acredita que as pessoas estão apavoradas, não conseguem entender o que acontece. Não tiveram tempo para processar que um país irmão está sendo atacado, então acabam apenas repetindo a propaganda. Mesmo aqueles de seu circuito mais próximo, mais politizados, têm dificuldade em entender o que acontece. “Levará tempo para que os russos se mobilizem.”

Da cidade de Reutov, a alguns quilômetros de Moscou, o jornalista e ativista pelos direitos humanos Evgeny Kurakin, 45, pede para que seu nome seja publicado. “Sou perseguido por minhas atividades profissionais há 11 anos”, diz, com certa indiferença, acrescentando que já foi reconhecido como prisioneiro político pela organização dos direitos humanos Memorial – organização que vem sendo perseguida pela justiça russa e, em 2021, teve seu fechamento ordenado.

Estou constantemente nas cortes e raramente vejo justiça por al”, diz Kurakin. “Depois de terem sido jogados para fora do Conselho da Europa, fomos privados do direito de recorrer das decisões dos tribunais russos. As perspectivas na Rússia se tornaram completamente sombrias.”

Kurakin comenta que andar pelo centro de Moscou tem sido uma experiência assustadora. Sobram espaços vazios e os preços subiram assustadoramente.

Sussurros são ouvidos por todas as partes. Mesmo que não possam levantar a voz, a sociedade discute os eventos e não se mostra satisfeita. As consequências são muito pesadas e a propaganda é tão descarada que as pessoas começam a desconfiar das autoridades.

“Falo isso baseado em minhas amizades: lhes dou informações alternativas e hoje eles já começam a questionar e fazer as perguntas certas. Nem tudo está perdido”, afirma, com indisfarçável alegria.

Sobre Putin, Kurakin acredita que ele “destruiu o sistema de justiça, destruiu a instituição das eleições, destruiu a liberdade de expressão, a competição, e fez o país recuar décadas. Tudo que ele foi capaz de desenvolver com sucesso foi corrupção”.

Como Sophia, ele vê a situação com algum pessimismo para o futuro imediato, mas acredita que “o regime apressou seu desaparecimento” e não se sustentará para sempre.

Uol