Ditadura torturou mais de 20 mil, diz Comissão da Verdade

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: CPDOCJB – 13.mar.64/Folhapress

A conjuntura política nacional da época foi um dos fatores que possibilitaram a instalação da CNV (Comissão Nacional da Verdade), que completa dez anos, nesta segunda-feira (16).

Os acúmulos obtidos em diversas iniciativas institucionais ao longo dos anos anteriores e a pressão internacional foram outros pontos importantes que ajudaram a construir o clima propício para iniciar o trabalho de análise de um período sensível da história política do Brasil.

O grupo analisou violações aos direitos humanos ocorridas no regime militar que comandou o país entre os anos de 1964 e 1985.

A situação mapeada na época ficou ofuscada no cenário político atual, com uma crise que envolve diferentes Poderes e as Forças Armadas às vésperas do período eleitoral e insinuações golpistas por parte do presidente Jair Bolsonaro (PL), defensor do período da ditadura militar.

“A comissão é tardia em relação ao nosso processo de redemocratização, quando a gente compara com outros contextos, mas ela não nasce no vazio”, afirma Fernando Perlatto, professor do departamento de história da Universidade Federal de Juiz de Fora.

​Segundo ele, apesar de limites e contradições, a comissão não surgiu depois de um salto temporal sem nenhuma iniciativa.

“Nós já vínhamos tendo ações desde o governo Fernando Henrique Cardoso, depois no governo Lula. Iniciativas importantes relacionadas ao que a gente chama de justiça de transição.”

Ao longo do regime militar, que entrou em vigor após uma conturbada situação política no país e foi implantado através de um golpe, foram muitos os relatos de violência contra opositores, presos e desaparecidos políticos, e tortura em instalações militares.

Os números não são precisos por causa da forte repressão que existia na época e do pouco acesso às informações. A ditadura também nunca reconheceu esses episódios.

Auditorias da Justiça Militar receberam 6.016 denúncias de tortura. Estimativas feitas depois apontam para 20 mil casos.

Os relatos de pessoas que sobreviveram às torturas incluem presos que foram pendurados em paus de arara, choques elétricos, estrangulamento, afogamento, socos e pontapés.

A comissão que analisou estes casos foi instituída em 16 de maio de 2012 e os trabalhos duraram até dezembro de 2014. As análises foram conduzidas por sete conselheiros, designados pela então presidente do país Dilma Rousseff, e contaram com a colaboração de dezenas de pesquisadores e assessores.

O grupo promoveu audiências públicas, recebeu documentos e fotos e colheu depoimentos de vítimas e acusados. Os trabalhos inspiraram a criação de várias outras comissões da verdade que atuavam em âmbito estadual e municipal.

Oficialmente, a CNV teve por finalidade apurar violações de direitos humanos de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, embora o grupo tenha se debruçado especialmente em analisar os casos ocorridos durante o regime militar.

Em seu relatório final, a comissão apresentou detalhes sobre prisões, tortura e assassinatos. Foram identificadas 434 mortes e desaparecimentos de vítimas do regime militar.

Segundo a conclusão dos trabalhos, as violações de direitos humanos ocorreram como resultado de ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro.

A análise afirma ainda que na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores políticos se converteram em política de Estado, com decisões emanadas da Presidência da República e dos ministérios militares, com a participação de militares em atos de violência.

Entre os crimes identificados pela comissão no período estão: detenções ilegais, tortura, execuções e ocultação de cadáver.

Fernando Perlatto inclui a pressão de diversos setores da sociedade civil ligados aos direitos humanos como outro fator que ajudou a construir o caminho para a instalação da comissão que analisou estes casos.

“Não podemos esquecer que o projeto para a instalação da comissão foi aprovado no Congresso Nacional. Pensemos hoje o que seria um projeto como esse submetido ao Congresso. Havia uma conjuntura política favorável.”

A Comissão Nacional da Verdade também analisou a violência praticada contra grupos específicos. Entre os recortes sociais realizados estavam violações aos direitos humanos relacionadas a camponeses; aos povos indígenas; a comunidade LGBTQIA+.

“A Comissão Nacional da Verdade, para além do impacto do relatório e das informações que ela traz, abriu um cenário de possibilidades para que o debate público sobre a ditadura ganhasse uma repercussão que não tinha desde o processo de redemocratização”, afirma Perlatto.

Ele cita como exemplos editoriais e matérias na imprensa, filmes e livros que teriam sido impulsionados por “esse clima que o trabalho da comissão criou”.

Se por um lado o período logo após a apresentação do relatório da CNV registrou o surgimento ou aprofundamento de pesquisas e materiais culturais com o objetivo de denunciar para a sociedade as violências, foi também o momento em que ganharam força movimentos pró-militares.

Desde 2014, tem sido cada vez mais comum em passeatas, redes sociais e manifestações públicas de políticos a defesa aberta da ditadura, a relativização das torturas ocorridas no período e pedidos para a instalação de um novo regime militar no Brasil.

Segundo o historiador Fernando Perlatto, boa parte desse movimento “teve muito a ver com uma reação a criação da Comissão Nacional da Verdade”.

Caroline Silveira Bauer, professora do departamento de história da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), concorda com a avaliação.

Segundo ela, o momento de divulgação do relatório final foi o “pior possível”. A conclusão dos trabalhos aconteceu logo depois das eleições de 2014.

“Eleições essas que foram questionadas e o país entrou em uma crise política e econômica muito grande, o que fez com que todo investimento posterior com a comissão se frustrasse. A gente pode dizer que desde que o relatório foi entregue nós só tivemos retrocessos nas políticas de memória relativas a ditadura militar”, analisa.

Isso porque, de acordo com a pesquisadora, nenhuma das medidas recomendadas pelo relatório final foram assumidas como política de Estado, desde 2014.

Nos últimos anos, as Forças Armadas e o Ministério da Defesa têm se manifestado nos meses de março celebrando o regime militar.

Apesar disso, Caroline Bauer afirma que a própria existência da Comissão da Verdade, mesmo com limitações de tempo, número de pessoas e dinheiro, teve um legado positivo “no sentido de explicitar para a sociedade brasileira que não dá para virar a página desse passado da ditadura sem analisar esse período”.

Sobre as recomendações do relatório final da comissão, ela cita que foram importantes também para fomentar uma discussão social sobre o legado da ditadura, sobre as homenagens e leis do período ditatorial.

“Nenhuma Comissão da Verdade, por si só, se basta. Inclusive, porque uma comissão não tem prerrogativa jurídica. O que é preciso é uma política de Estado na qual a Comissão da Verdade seja uma das etapas e que se garantam outros direitos”, diz.

“Não apenas a memória e a verdade, mas também o direito à Justiça, e essa é a etapa que não foi efetivada, nem uma Justiça reparatória nem uma Justiça penal.”

A reportagem procurou o Ministério da Defesa, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, mas não obteve resposta até a publicação do texto.

Comissão Nacional da Verdade (CNV)

Como funcionou o trabalho

Instituída em 16 de maio de 2012
Finalizada em 10 dezembro de 2014
Foi integrada por sete conselheiros designados pela presidente Dilma Rousseff
As investigações contaram com o apoio de assessores, consultores e pesquisadores
A CNV teve por finalidade apurar violações de direitos humanos entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988
Analisou também violências contra grupos específicos: camponeses; igrejas cristãs; povos indígenas; universidade
Analisou em especial o período da ditadura militar (1964 a 1985)
Os trabalhos da CNV tiveram a colaboração de comissões da verdade estaduais, municipais e setoriais
A comissão realizou audiências públicas, ouviu depoimentos e colheu documentos e fotos
Relatório final apresentou detalhes sobre prisões, tortura e mortes
Conclusões da comissão

Foram identificadas 434 mortes e desaparecimentos de vítimas do regime militar
Violações de direitos humanos foram resultado de ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro
Na ditadura militar, a repressão e a eliminação de opositores políticos se converteram em política de Estado
As decisões que resultaram em violações de direitos humanos foram emanadas da Presidência da República e dos ministérios militares
Participação de militares em violações dos direitos humanos
Utilização de instalações do Exército, da Marinha e da Aeronáutica nas práticas repressivas
Foram empregados recursos públicos com a finalidade de promoção de ações criminosas
Crimes apontados pela comissão

Detenções ilegais
Tortura
Execuções
Desaparecimentos
Ocultação de cadáver
Recomendações

Reconhecimento, pelas Forças Armadas, de responsabilidade institucional pelas violações de direitos humanos
Responsabilização jurídica dos agentes públicos que participaram de violações de direitos humanos
Proibição da realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964
Reformulação dos concursos de ingresso nas Forças Armadas e na área de segurança pública
Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos
Retificação nos atestados de óbito de pessoas mortas em decorrência de graves violações de direitos humanos
Criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura
Desvinculação dos institutos médicos legais das secretarias de segurança pública e das polícias civis
Fortalecimento das Defensorias Públicas
Revogação da Lei de Segurança Nacional
Desmilitarização das polícias militares estaduais
Extinção da Justiça Militar estadual
Alteração da legislação processual penal para eliminação da figura do auto de resistência à prisão
Prosseguimento e fortalecimento da política de localização e abertura dos arquivos da ditadura militar

Folha