Grupo falso de WhatsApp mostra Bolsonaro derretendo

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Foto: Reprodução

Às 2h59 do dia 9 de março de 2021, a coluna teve sua conta de celular adicionada sem aprovação num grupo de WhatsApp pró-Bolsonaro. É uma prática corrente entre os apoiadores digitais do presidente: números de telefone que tenham interagido com a extensa rede de comunicação bolsonarista — no meu caso, para uma pesquisa acadêmica — passam a ser incluídos à revelia em grupos de propaganda. O próprio WhatsApp adverte que, na configuração padrão, qualquer pessoa que tenha seu número de telefone pode inseri-lo num grupo.

A tela indicava que pelo menos uma dezena de pessoas havia sido cooptada na mesma leva. A acolhida não foi animadora. “Bolsonaro é o meu p…”, poetizou um dos novos integrantes. “Capaz que [vou] ficar seguindo um traidor, mentiroso, e que tá f… com [o] Brasil”, elogiou outro. Antes que o Sol raiasse, seis pessoas já haviam clicado em “sair do grupo”. O que surpreendeu Roberto Santos, administrador da comunidade. “Eram números que em algum momento já haviam participado de outros grupos pró-Bolsonaro no WhatsApp. Aí eu vi que o bolsonarismo não estava mais imperando”.

Não é a única peculiaridade no grupo criado pelo baiano de 44 anos. A timeline costuma estar cheia de ataques e contra-ataques opondo, de um lado, o atual presidente e, de outro, Lula e o PT. Nos grupos bolsonaristas “raiz”, quase não há opiniões contrárias, porque eventuais críticos são rapidamente excluídos pelos administradores. No grupo de Roberto também há bastante gritaria: “Não vamos aguentar comunistas aqui defendendo os petralhas”, “Que desrespeito com o capitão”, “Quem é o tosco administrador do grupo?”. Mas nada acontece porque o administrador — Roberto — é também a pessoa que posta as mensagens que despertam a ira dos bolsonaristas.

Publicitário de formação, pós-graduado em educação, Roberto Santos atua desde 2012 com gerenciamento de redes sociais. Ele se define como um militante “cidadão”, que sempre fez campanha para o PT embora nunca tenha se filiado a qualquer partido político. “Estudei em uma das escolas mais politizadas de Salvador, o Colégio Estadual da Bahia. Fui construindo minha identidade mais à esquerda e me tornei um militante no dia a dia: na fila do ônibus, quando ligam por engano, no supermercado. Vou te mandar uma foto do meu carrinho de compras”.

Para o publicitário, eleições sempre foram momentos-chave para a ação. Em 2002, trabalhando como metalúrgico, ele comprava material de campanha nos diretórios do PT e distribuía para os colegas na linha de montagem. Em 2006, aproveitou que o Hotmail possibilitava o envio de até 100 mensagens por dia para desmentir boatos sobre Lula. “Uma prima mandava um monte de enganações em power point. Eu tinha o trabalho de copiar todo mundo na mensagem e responder individualmente, dizendo que era mentira”, diz.

O choque com a eleição de Bolsonaro em 2018 gerou uma mudança de estratégia. Roberto passou a frequentar grupos bolsonaristas para “entender como era a comunicação deles”. Depois veio a interação crítica no WhatsApp, diversas expulsões e, finalmente, a criação do grupo falso, desenhado com base nos diferentes públicos que o publicitário identificou.

“Tem os disseminadores, que são os primeiros a enviar o conteúdo; os compartilhadores, que espalham para muitos outros grupos; e a maioria silenciosa, que está lá por ter sido adicionada e não saiu”. A descrição de Roberto bate com o monitoramento em 10 grupos bolsonaristas que revelou que apenas 1,6% dos usuários postavam 50% dos conteúdos. Durante as 24 horas da medição, 85% dos integrantes não publicaram nada. “Essa turma, que consome o conteúdo sem buscar a verdade, é o meu foco”, diz o publicitário.

A coluna mantém contato com Roberto desde julho de 2021. As primeiras trocas de mensagens foram cercadas de desconfiança. “Olá, Rodrigo. Prefiro entrar em contato contigo pelo perfil do Instagram por ser verificado”, escreveu. Identidades confirmadas de parte a parte — o publicitário enviou seus perfis no Linkedin, Instagram, Twitter e Facebook —, realizamos uma primeira chamada de vídeo gravada em 30 de julho. A ela se seguiram o monitoramento constante do grupo e trocas esporádicas de mensagens até a publicação desta reportagem.

Storytelling com o “inocente” e o “militante de esquerda”

Para apimentar as discussões e simular interações verossímeis, Roberto utiliza vários números de celular em seu storytelling no WhatsApp. “Um dos personagens é o inocente, que compartilha coisas absurdas e sempre pergunta se é verdade. Escreve atropelado e simples e posta conteúdo que possa ser desmentido”. No meio da madrugada, entra outro personagem, o “militante de esquerda”, que rebate as informações “rasgando o verbo”, como diz o publicitário, o que inclui um robusto portfólio de palavrões. “Novamente o inocente entre em cena, dizendo coisas como ‘alguém precisa expulsar esse esquerdopata’, ‘apaguem isso’ e assim por diante”.

Um terceiro perfil é o de um personagem gay, de esquerda, bem casado, bem-sucedido, com um casal de filhos adotados já na faculdade — um cursando medicina e o outro, direito. Em nossa primeira conversa, em julho de 2021, Roberto estava surpreendido com a acolhida ao personagem. “Há um respeito à orientação sexual, como se valorizassem o cara que se deu bem”. A lua de mel, entretanto, não resistiu à inclusão de novos integrantes na virada do ano. “Quer lacrar? Espere a parada gay”, “morde fronha”, “baiano corno e viado” são alguns dos apupos recentes.

A coluna acompanha o grupo desde sua criação. Entre março de 2021 e fevereiro de 2022, foram trocadas 20.207 mensagens — média de 55 por dia, um número modesto comparado a outros grupos bolsonaristas que ultrapassam a marca de 1.100 mensagens diárias. Em abril, a proximidade da corrida eleitoral fez o número dobrar para 100 mensagens.

Se no ano passado as discussões eram puxadas pelos alter egos de Roberto, a divulgação do link do grupo em comunidades bolsonaristas legítimas trouxe apoiadores incondicionais do presidente e aumentou a temperatura das interações. Seria impreciso falar em “debate”: não há troca de opiniões, apenas de conteúdos a favor e contra o presidente, a maioria memes, figurinhas satíricas e vídeos.

A disputa é apertada. Na última segunda-feira (23), o placar registrava 9 mensagens em defesa do ex-capitão, publicadas por 3 pessoas, e 20 conteúdos contra Bolsonaro — 17 deles divulgados por números pertencentes a Roberto. Os outros 30 integrantes do grupo permaneceram em silêncio. Não se pode sequer garantir que viram as mensagens. “Tem vezes que eu posto e volto dois dias depois para ver quem leu. Tem conteúdos que quase ninguém lê. Não sei por que as pessoas entram em grupos e não interagem. Isso é algo que precisa ser estudado.”

Ainda assim, a tese do publicitário é que divulgar críticas e desmentidos tem, sim, efeito nas opiniões. “Posso até não transformar as pessoas que só acompanham o grupo em eleitores de esquerda, mas em Bolsonaro elas não votam mais. Acaba aquela história de querer defender porque ele seria honesto. Elas já sabem que ele não é”. Atualmente, a militância voluntária toma cerca de duas horas do tempo do publicitário, geralmente de madrugada, estratégia para que as publicações anti-Bolsonaro e pró-PT sirvam como leitura matinal aos integrantes do grupo. Mas a ação tem data para acabar. “Vou apagar o grupo antes das eleições. Tenho de me preservar”.

Uol