Há quase um século, SP mergulhava em guerra civil

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Foto: Lucas Lima-5.jan.16/UOL

“Me perguntam, às vezes, se eu já vi fantasma”, diz, sorrindo, Carlos Gomes Leal, porteiro de um edifício histórico do centro de São Paulo, o Barão de Itapetininga, situado na rua de mesmo nome, na esquina com a praça da República. “Nunca vi, tenho medo é dos vivos.”

Uma placa azul na fachada do prédio de número 298 explica as brincadeiras que os amigos fazem com Leal. “MMDC – Daqui partiram os disparos que alvejaram em 23 de maio de 1932 os jovens Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo durante manifestação. Suas iniciais designaram a sociedade interessada na derrubada de Vargas”, diz.

“Me lembro de ter aprendido sobre o MMDC na escola”, diz Geane Cruz, que coordena as secretárias do polo da universidade Anhanguera instalado naquele prédio. O assunto Revolução de 1932 voltou à vida dela quando conheceu o namorado, depois marido, há mais de 30 anos.

“Ele, que morava no estado do Rio, falava que São Paulo queria se separar do resto do país naquela época. Eu dizia que os paulistas lutavam, na verdade, pela Constituição”, conta.

Era divergência ligeira, longe de representar um ruído na relação do casal. Bem diferente foi o que se viu na noite de 23 de maio de 1932.

Há exatamente 90 anos, o conflito entre aqueles que estavam dentro do prédio —os militantes favoráveis a Getúlio Vargas— e os que o cercavam —a crescente oposição ao líder gaúcho— foi além dos tiroteios. O chão da praça tremeu algumas vezes com o impacto das granadas lançadas pelos getulistas.

“A guerra começou na praça da República”, escreveu o historiador Hernâni Donato em referência à Revolução de 32, também conhecida como Revolução Constitucionalista.

Para falar das motivações do 23 de maio, é preciso regressar a outubro de 1930, quando o gaúcho encabeçou um golpe e assumiu o comando do país.

A maior parte da classe política paulista, satisfeita com as benesses da chamada República Velha, tinha resistido aos avanços getulistas naquele ano. Mas parcela significativa da elite do estado apoiou a deposição do presidente Washington Luís.

“Esses paulistas imaginavam que Getúlio daria o golpe e depois iria repor a ordem constitucional”, diz Ilka Stern Cohen, doutora em história social pela USP e autora de “Bombas sobre São Paulo – A Revolução de 1924”. Eles também imaginavam que teriam seu quinhão de poder no estado no novo cenário.

Nem uma coisa nem outra. Ao assumir o poder, Getúlio dissolveu o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais, e passou a indicar interventores para os estados. No caso de São Paulo, escolheu o militar pernambucano João Alberto, iniciativa vista como uma afronta pelas lideranças do estado.

O incômodo aumentou com algumas medidas de João Alberto, como a nomeação de oficiais do Exército para delegacias regionais, e a demora para convocar uma Constituinte ampliou a indignação.

A questão política é preponderante para o fortalecimento da oposição no estado, segundo Boris Fausto, autor de “A Revolução de 1930”. Para o historiador, “Getúlio tratou São Paulo como terra arrasada”.

As elites econômicas (empresários, fazendeiros, industriais) e a classe média eram mais veementes nas críticas, mas a maior parte das camadas populares paulistas também desaprovava o governo federal.

Havia ainda uma alteração de rota na condução da economia. Na República Velha, São Paulo tinha voz determinante em decisões sobre a cafeicultura, o que mudou substancialmente com a ascensão do político gaúcho.

As greves se tornaram frequentes na capital paulista e no interior e “são vistas como o elemento mais perturbador da ordem pública”, como aponta a historiadora Vavy Pacheco Borges no livro “Tenentismo e Revolução Brasileira”.

São paralisações defendidas por Miguel Costa, ex-comandante da coluna batizada com o nome dele e de Luís Carlos Prestes. Àquela altura, Costa era líder da Legião Revolucionária, movimento de apoio aos ideais da Revolução de 30.

Não bastassem esses e outros entraves políticos e econômicos, prevalecia, segundo os historiadores ouvidos pela Folha, uma construção idealizada, que pressupunha a superioridade paulista diante do resto do país.

Boris se recorda de uma imagem recorrente na época, a locomotiva puxando 20 vagões vazios, ou seja, São Paulo e os outros 20 estados, conforme a divisão em vigor no período.

“A elite paulista expressava arrogância em relação aos demais estados”, diz. Em suma, a “locomotiva” apartada do poder central era algo inadmissível para grande parte dos paulistas.

João Alberto não resistiu à pressão e deixou o poder. Passados alguns meses, Getúlio escolheu Pedro de Toledo, um nome civil e paulista, como queria a oposição. Nesse momento, no entanto, a animosidade já tinha atingido um nível alarmante e restavam poucos grupos em São Paulo, como os socialistas, ao lado do governo federal.

“Já havia uma grande efervescência desde o final de 1931. Em 23 de maio, aconteceu a explosão”, conta Ilka Stern Cohen. Naquela noite, cerca de 200 estudantes, muitos deles com porretes e barras de ferro, como descreve o jornalista Lira Neto na biografia de Getúlio, partiram em direção à sede da Legião Revolucionária, na rua Barão de Itapetininga. Assim que se aproximaram do prédio, foram recebidos com tiros.

Os estudantes, agora com apoio de populares, não recuaram. Arrombaram lojas de armas nas ruas próximas e levaram fuzis e revólveres para o contra-ataque. Não foi suficiente.

Embora em menor número, os getulistas ocupavam uma posição estratégica, a sobreloja do edifício, e tinham mais poder de fogo, lançando granadas nos manifestantes. O combate só acabou no final da madrugada do dia 24, quando o Exército chegou e prendeu os membros da Legião Revolucionária.

O tumulto terminou com 13 mortos e muitos feridos, segundo Ilka, mas só quatro ganharam, de fato, notoriedade.

O auxiliar de escritório Euclides Miragaia, o comerciário Antônio Américo Camargo Andrade e o fazendeiro Mário Martins de Almeida caíram em meio aos tiroteios. Atingido por uma bala, o ajudante de farmácia Dráusio Marcondes de Sousa, de 14 anos, morreu alguns dias depois.

Em poucos dias, uma organização paramilitar antigetulista adotou o nome MMDC, uma decisão que tornou a sigla célebre.

Nas décadas seguintes, homenagens pela cidade mantiveram vivas as marcas daquele dia. Nos anos 1950, por exemplo, a grande avenida que corta bairros como Bela Vista e Vila Mariana ganhou o nome de 23 de Maio.

A guerra de 1932 havia se tornado uma questão de tempo. Eclodiu um mês e meio depois –não por acaso 9 de Julho é o nome de outra importante avenida paulistana. Mas essa é outra história.

Folha