Bolívia fará reclamação formal por Bolsonaro oferecer asilo a Añez

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O governo da Bolívia rechaçou nesta terça-feira uma declaração do presidente Jair Bolsonaro, que no fim de semana prometeu “fazer o possível” para conceder asilo político à ex-presidente boliviana, Jeanine Áñez, caso La Paz aceitasse. A política foi condenada no início do mês a 10 anos de prisão pelo golpe de Estado contra o esquerdista Evo Morales, em 2019.

De acordo com o chanceler do país vizinho, Rogelio Mayta, as declarações de Bolsonaro são “absolutamente impertinentes” e representam uma “interferência inadequada em assuntos internos”. Segundo ele, o governo boliviano fará uma “reclamação diplomática” formal ao Palácio do Planalto:

— Lamentamos as declarações inadequadas — afirmou o ministro. — Sob circunstância nenhuma devemos aceitar a interferência em decisões que soberanamente cabem à Justiça boliviana.

No domingo, em uma entrevista concedida a um canal do YouTube e transmitida por suas redes sociais, Bolsonaro prometeu fazer o possível para que Áñez viesse “para o Brasil caso assim o governo da Bolívia concordasse”. Ele disse também ter conversado sobre o assunto com outros líderes da região, citando nominalmente o argentino Alberto Fernández.

— Ela cumpriu um ano de cadeia, tentou duas vezes o suicídio, tive uma vez com ela apenas, achei uma pessoa bastante simpática, uma mulher, acima de tudo — disse o mandatário brasileiro, afirmando que Áñez está “presa injustamente”. — Eu sei que a Jeanine está presa, vi umas imagens terríveis, uma mulher sendo arrastada para dentro do presídio, sendo acusada de atos antidemocráticos.

Detida preventivamente desde março de 2021, a ex-presidente boliviana agradeceu pelo Twitter o convite do mandatário brasileiro, mas afirmou que “não deixou e nem deixará” seu país. Ex-apresentadora de televisão que se elegeu senadora, ela se aproveitou de um vácuo de poder para virar presidente da República após a renúncia de Evo, em novembro de 2019, pressionado por militares.

Disputa pelo poder

Na época, Áñez era segunda vice-presidente do Senado e tinha pouca projeção nacional. A sessão que a consagrou presidente não teve o quorum necessário pela lei boliviana para empossar um novo mandatário, mas ainda assim foi validada pela Justiça. O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecê-la como presidente interina.

O partido de Evo, o Movimento ao Socialismo (MAS) — que voltou ao poder em novembro de 2020 com a eleição de Luis Arce — diz que ele foi afastado do poder por meio de um golpe, com a participação de União Europeia, Brasil e Equador, além da Igreja Católica e lideranças locais de direita. Seus opositores defendem, por sua vez, que houve uma revolta popular contra Morales, a quem acusam de ter cometido fraude nas eleições de 2019, quando foi eleito para um quarto mandato, até 2025.

No último dia 10, após cinco dias de audiências, Áñez foi condenada a 10 anos de prisão por participar de um golpe de Estado. A ex-presidente enfrenta vários julgamentos simultâneos, entre eles os chamados caso Golpe de Estado I e caso Golpe de Estado II, pelo qual foi sentenciada. O caso I, parado no Parlamento, é por seus atos como presidente, e o II, por seus atos como senadora.

A condenação abre agora um precedente para que mais políticos e outros atores que participaram do processo que culminou na renúncia de Evo sejam julgados, o que pode levar a uma crise institucional, segundo analistas ouvidos pelo GLOBO. Para muitos, Áñez é vista como um bode expiatório para figuras mais poderosas na cena política boliviana, como o hoje governador Luis Fernando Camacho e o ex-ministro de governo Arturo Murillo, que fugiu do país e acabou preso nos EUA.

Após a condenação, na última sexta-feira, dois ex-ministros de seu governo foram detidos: Álvaro Guzmán, de Justiça, e Álvaro Coimbra, de Energia. Mas vários políticos que compuseram seu Ministério estão foragidos ou já fugiram do país: além de Murillo, outro exemplo é o ex-ministro da Defesa Fernando López, que deixou a Bolívia quando o MAS voltou ao poder — há rumores de que López esteja no Brasil.

Também teme-se pela independência do Judiciário boliviano, com especialistas apontando diversos abusos processuais, criticados pela oposição, pelos EUA e pela UE: a ex-presidente não tinha intenção de deixar o país quando foi detida, por exemplo, um fator que tornaria sua detenção desnecessária. A prisão preventiva, no entanto, não é rara no país: hoje mais de 66% dos acusados aguardam seus julgamentos presos, número que vem aumentando nos dois últimos anos.

A falta de independência da Justiça também não é algo novo: durante seu governo interino, a própria Áñez conduziu processos contra os então opositores do MAS, incluindo um pedido no Tribunal Penal Internacional (TPI) para investigar Morales, que ficou no poder entre 2006 e 2019, por crimes contra a Humanidade. O pedido foi rejeitado pelo TPI.

Bolsonaro, por sua vez, aproveitou ainda a oportunidade para criticar seu opositor na corrida eleitoral brasileira deste ano, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chamando-o de “hipócrita” por não ter intercedido a favor de Áñez, afirmando se tratar de uma questão de “direitos humanos”. O petista tem um bom trânsito não só com o ex-líder boliviano, mas também com o atual, Luis Arce.

— O Brasil está botando em prática a questão de relações internacionais, de direitos humanos, para ver se traz a Jeanine Áñez, oferece para ela o abrigo aqui no Brasil. É uma injustiça com uma mulher presa na Bolívia

Globo