Bolsonaristas que querem homeschooling defendem bater em criança

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Foto: Inge Snip

Treinamento oferecido pelo maior grupo de promoção da educação domiciliar (homeschooling) no Brasil encoraja pais a bater em suas crianças “calma e pacientemente” como forma de educar, revela uma investigação da Agência Pública e da openDemocracy.

Livros, sites e vídeos consultados pela reportagem dão dicas aos pais de como bater em crianças e contornar a lei — evitando lesões graves, marcas visíveis e humilhação pública. Materiais também afirmam que pais que não castigam os filhos com a “vara” não amam a Deus ou aos seus filhos.

O Senado pode votar ainda neste ano o PL (projeto de lei) que busca regulamentar a educação domiciliar no Brasil, uma promessa assumida pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) desde a campanha — para preocupação da Unicef. A pauta é defendida há anos por grupos conservadores, apesar de essa modalidade de ensino alcançar apenas 0,03% das crianças em idade escolar, segundo estimativas.

Desde 2014, os castigos físicos são proibidos na educação brasileira.

“É na escola que os abusos e violências são descobertos”, afirma a deputada federal e educadora Sâmia Bomfim (PSOL). “Sem o acesso à escola, crianças que sofrem violência física ficam ainda mais vulneráveis — 81% dos casos de violência física contra crianças acontecem em casa”, diz a parlamentar.

No Brasil, há 46,7 milhões de estudantes matriculados na educação básica, de acordo com as estatísticas oficiais do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), e há 1,4 milhão de crianças fora da escola. Enquanto isso, apenas 15 mil crianças são educadas em casa, segundo a Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar), principal promotora do homeschooling no Brasil.

Com tantas questões urgentes na educação, só um lobby muito poderoso explica a aprovação de um PL que interessa a um grupo de apenas 15 mil pessoas”Sâmia Bomfim, deputada do PSOL

Em um curso online, Alexandre Magno Fernandes Moreira, ex-secretário nacional de Proteção Global do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, diz aos pais: “O castigo físico sempre tem de ter uma finalidade (…) é algo que deve ser feito com calma, paciência e dentro de situações específicas”.

Print de trecho do curso online "O Direito da Família", de Alexandre Magno Moreira - Reprodução - Reprodução

O castigo “não pode colocar em risco a vida ou a saúde da criança e do adolescente (…) não pode provocar constrangimento, humilhação ou qualquer tipo de vexação para a criança”, acrescenta.

Moreira, que foi secretário nacional na pasta em 2019 e 2020 e diretor jurídico da Aned de 2010 a 2019, ainda é consultor jurídico da associação.

Ele também é ligado ao grupo ultra-conservador estadunidense Home School Legal Defense Association (HSLDA, “Associação de Defesa Jurídica do Home School”) e foi conselheiro da Global Home Education Exchange (GHEX, Intercâmbio Global de Educação Domiciliar), uma plataforma para as atividades internacionais da HSLDA.

Seu curso, “O Direito da Família”, está disponível no Brasil Paralelo, produtora conhecida como a ‘Netflix da direita’.

No grupo de Moreira no Telegram, chamado “A família e seus direitos” — que tem mais de 10,8 mil inscritos —, uma enquete sobre castigos físicos foi lançada em maio de 2021. Das 664 respostas, 51% marcaram que “sim, eu uso castigo físico (por exemplo, palmadas)”.

Print do grupo de Moreira sobre homeschooling no Telegram onde inscritos defendem o uso de castigos físicos - Reprodução - Reprodução

“Aqui em casa temos o corinho, sempre no bumbum, a vara da disciplina afasta a estulticia (sic) do coração. Eles precisam entender que o pecado gera consequências, a a (sic) vara limpa o coração”, escreveu uma mulher. “Sim eu uso somente a vara, nada de mão, chinelo e cinto, A Bíblia não nos ensina a usar essas coisas, mas sim a vara!!!”, compartilhou outra participante.

Fundada em 2010 e sediada em Brasília, a Aned faz lobby no Congresso e tem uma rede de representantes em diversos estados. A Aned não defende explicitamente o uso de violência contra crianças, mas distribui materiais que o fazem — por meio do Clube Aned, um programa para membros com 25 empresas parceiras. Nossa investigação apurou que ao menos quatro dessas empresas oferecem livros ou materiais didáticos que promovem ou normalizam castigos físicos.

Uma delas é a “Família que Educa”, criada por Flávia Saraiva, representante da Aned na Bahia, que oferece materiais didáticos com links para vídeos no YouTube e grupos de Telegram, incluindo o canal de Moreira.

Rede social da "Família que Educa", empresa que oferece livros ou materiais didáticos que promovem ou normalizam castigos físicos - Reprodução - Reprodução

Outra empresa parceira do Clube Aned, a Homeschoolarizando compartilha materiais onde são encontrados versículos da Bíblia como: “A vara e a repreensão dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma envergonha a sua mãe”.

A Kairós Consultoria Educacional — parceira da Aned — divulga o trabalho da polêmica autora Simone Quaresma. Seu livro, intitulado “O que toda mãe gostaria de saber sobre a disciplina bíblica”, teve a venda proibida em 2020 por defender o uso de castigos físicos. Ela orienta os pais a usar varas de silicone para bater em seus filhos em áreas não visíveis do corpo e diz que, tão logo o bebê consiga se manter sentado, “você terá que começar a dar leves tapinhas no seu bumbum ou na sua mãozinha (…) Logo, logo, porém, já será a hora de partir para o uso da vara propriamente dita”.

O livro continua sendo vendido pela plataforma do Simpósio Online de Educação Domiciliar, o Simeduc. A empresa pertence à ativista do homeschooling Gaba Costa, que ajudou a trazer o programa ultraconservador cristão britânico Classical Conversations para o Brasil. Outra parceira da Aned, a Comunidade Educação no Lar vende um curso online que inclui trechos do livro de Simone Quaresma.

Quaresma recomenda argumentos a serem ensinados às crianças para caso sejam questionadas sobre violência física em casa: por exemplo, que o uso de castigos físicos é um assunto privado. Ela também dá a entender que possuir alguma deficiência não seria motivo para isentar uma criança de castigos físicos.

A decisão judicial de 2020, que proibiu a venda de seu livro, também ordenou que conteúdos sobre “disciplina bíblica” publicados por ela na internet fossem retirados do ar. No entanto, um texto publicado após a decisão e outros artigos que descrevem como usar a vara, continuam disponíveis em seu site. Quaresma apelou da decisão sem sucesso.

Quaresma disse à reportagem que não comentaria sobre seu livro, por estar “enfrentando uma ação fruto de uma denúncia do Ministério Público”. Ela afirma que o homeschooling é uma boa opção para famílias cristãs que não têm acesso a escolas cristãs adequadas, mas que “a disciplina que a Bíblia ensina não tem nada a ver com homeschooling. São duas coisas completamente diferentes”.

Uma tutora da comunidade Classical Conversations e mentora de famílias adeptas da educação domiciliar, que pediu para permanecer anônima, disse à reportagem que o castigo físico tem amparo bíblico. “A Bíblia diz: ‘discipline seu filho, mas não discipline para matar’.

A Bíblia tem versículos que nos orientam, sim, a usar a vara da correção. Mas quando a gente fala isso, as pessoas que vêm de fora pensam que é um massacre”.

Tem pais que orientam os filhos tirando aquilo que eles gostam, outros usam a vara realmente batendo no filho”Gaba Costa, ativista do homeschooling

A violência doméstica contra crianças é algo comum no Brasil. Um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que “maus-tratos” foram a segunda forma de violência mais registrada (após estupro) contra menores de 18 anos entre 2019 e 2021. A maioria absoluta das vítimas (90%) tinha menos de 15 anos.

Define-se como maus-tratos o uso de violência como forma de correção ou disciplina, de acordo com o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. O terceiro crime mais reportado foi o de lesão corporal em contexto de violência doméstica. O levantamento estima mais de 137 crimes contra menores de idade registrados diariamente, com alta taxa de subnotificação.

Apenas 3 dos 7 pais adeptos da educação domiciliar entrevistados pela reportagem consideram que castigos físicos são cruéis ou inapropriados. Uma das entrevistadas, que falou em condição de anonimato, é uma mulher de 38 anos de Florianópolis (SC) que pratica educação domiciliar com seus três filhos desde 2018.

Ela diz que nunca bateu em seus filhos — mas mostra compreensão pelas “famílias que vão usar a vara da disciplina, no sentido de bater em suas crianças de forma agressiva”. “Todo tipo de pessoa, independentemente de crença religiosa, vai agir como achar melhor para educar seus filhos.”

Uma educadora evangélica defensora do homeschooling, que também conversou com a reportagem em condição de anonimato, defende que a Bíblia está sendo interpretada de maneira equivocada. “[Se] o líder religioso diz que é para bater, então as pessoas creem que disciplina bíblica é bater”, afirma.

“Infelizmente, hoje em dia, as escolas estão com a aprendizagem muito aquém do esperado. E principalmente com a pandemia”, argumenta uma mulher de 34 anos, formada em pedagogia e mãe de quatro filhos, que pediu para não ser identificada. Ela também cita a “ideologia de gênero” e a violência nas escolas entre as razões pelas quais ela recorreu à educação domiciliar.

Desde 2010, a Aned tem desafiado a lei que tornou obrigatório que menores de 17 anos frequentem as escolas, pressionando por mudanças nas legislações e defendendo adeptos do homeschooling na Justiça. Santa Catarina e Paraná aprovaram legislações pró-ensino domiciliar, depois suspensas pelas cortes estaduais.

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que os pais não poderiam tirar suas crianças da escola para ensinar em casa sem que uma lei fosse aprovada pelo Congresso. A eleição de Bolsonaro foi decisiva para que a pauta da Aned ganhasse força. A regulamentação da educação domiciliar era meta prioritária para os cem primeiros dias do governo.

Bolsonaro não cumpriu a promessa, mas em ano de eleições voltou a dar atenção à pauta. Em maio, um projeto de lei para regulamentar a educação domiciliar no Brasil foi aprovado em votação relâmpago na Câmara dos Deputados. O PL agora tramita no Senado.

A ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos e pastora evangélica Damares Alves publicou um vídeo pedindo que eleitores cobrem dos parlamentares voto favorável ao projeto. “Homeschooling é um sonho e um direito da família”, escreveu.

O PL determina que ao menos um dos responsáveis tenham diploma de ensino superior e que as crianças ensinadas em casa passem por avaliações anuais por escolas regulares.

A deputada Sâmia Bomfim, que votou contra o PL, diz que não há garantia de que os pais adeptos da educação domiciliar serão supervisionados ou de que as crianças serão testadas. “Não é viável (…) Não temos recursos materiais e humanos para realizar essas inspeções.”

“No Brasil, o homeschooling se tornou uma das principais pautas de grupos conservadores religiosos”, explica Andrea Silveira de Souza, pesquisadora de educação e religião na Universidade Federal de Juiz de Fora. “Sobretudo evangélicos, em oposição à laicidade e à proibição do proselitismo religioso, que são diretrizes estabelecidas pela Lei Geral de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que regulamenta o ensino no país desde 1996.”

As metodologias de ensino domiciliar adotadas no Brasil costumam vir do exterior. As duas mais mencionadas pelos entrevistados são a Educação Clássica Cristã (Classical Conversations), dos EUA, e o método de Charlotte Mason, educadora britânica do século 19. Ambas conectam a aprendizagem a princípios bíblicos, e seus métodos de ensino têm origem na Idade Média.

A maior influência internacional no Brasil vem do grupo ultraconservador estadunidense HSLDA. A Aned se gaba de seus vínculos com a HSLDA, fundada nos EUA em 1983 pelo advogado Michael Farris, presidente da Alliance Defending Freedom (ADF; Aliança em Defesa da Liberdade) — organização envolvida em campanhas contra o aborto legal e direitos de pessoas LGBTQIA+.

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