Ex-banqueiro sai do Brasil para fugir do bolsonarismo

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Foto: Agência Garoa Lisboa/Divulgação

Este texto é parte da versão online da edição de sexta-feira (8) da newsletter de Daniela Pinheiro. No conteúdo completo, a colunista fala sobre o show de Marisa Monte em Lisboa, a polêmica da estátua ‘A Foda dos Nus’ na imprensa portuguesa e mais.

Em março passado, o ex-banqueiro e empreendedor social Paulo Dalla Nora Macedo, 47, despachou dois contêineres com toda sua mobília, uma preciosa coleção de obras de arte — que inclui 65 quadros de artistas plásticos de renome nacional e internacional —, toda biblioteca de clássicos e se mudou com a mulher e os dois filhos para Lisboa. Diferentemente da leva de brasileiros que ruma para Portugal, ele não estava fugindo da violência, nem da crise econômica, também não era por conta da corrupção endêmica no país ou porque estava preparado para desfrutar a aposentadoria. Sua questão foi o bolsonarismo. Ou melhor, o que sobrará dele.

Para Dalla Nora, foi a impossibilidade de continuar lidando com um jeito de ser, de pensar, de agir, de um grupo de pessoas que se identifica com o atual mandatário e que deve manter o protagonismo mesmo com Bolsonaro fora do governo. “Aquelas pessoas que saíram do armário, na acepção ruim da expressão, e se sentiram autorizadas a expressar o racismo, a misoginia, o preconceito, a desfaçatez e até a falta de educação sem pudor, elas não vão desaparecer do dia para a noite”. Ele acha que o Brasil piorou, e a elite — da qual participa — tem sua responsabilidade.

Dalla Nora era herdeiro de uma empresa de transportes e seguros no Nordeste, comprada pela gigante Prosegur, e foi um dos sócios do Banco Gerador, vendido em 2016. Desde então, passou a investir em diferentes negócios, dedicar-se a causas sociais e tentar elevar o debate político nacional. É vice-presidente do Instituto Política Viva, um grupo ativo nas discussões e ações para mudar o rumo do país. Também criou o Poder do Voto, que ajuda cidadãos a acompanhar e entender votações no Congresso. Em Lisboa, vai ser restaurateur. Em breve, inaugura um bistrô francês, cujas receitas levam ingredientes brasileiros e que é decorado com obras de artistas modernistas. Não será para todo mundo: um prato de moqueca com dendê e carabineiro (um tipo de camarão) vai custar 48 euros. Em uma hora de conversa, ele contou por que os ricos ainda apoiam o governo, como o bolsonarismo afetou sua vida e mais. O depoimento foi condensado e editado para melhor compreensão.

‘Saí do Brasil por uma conjunção de fatores motivados por um gatilho específico. Primeiro, não queria mais que meus filhos vivessem na bolha que vivemos lá’

Em São Paulo, capital financeira, opções de lazer privadas, tudo é fechado: é clube, praia, escolas, academia. Queria que eles tivessem um pouco o que eu tive no Recife até os meus 20 anos: mais liberdade, mais diversidade. Outro dia, fomos aqui na piscina pública de Oeiras. Foi ótimo, mas vários amigos meus ficaram chocados. Por que eu fui para uma piscina pública? A elite não conhece e não se interessa em conhecer o Brasil. Sabem mais da ruazinha em Nova York ou em Miami do que um entroncamento no Pina. O cara entra no carro e vai para o trabalho. Quando vai para a praia, vai de helicóptero, chega lá e vive na bolha. O que é aquele Epcot Center que se chama Trancoso? Aquilo não é Nordeste, aquilo não é o Brasil. Isso sempre me incomodou muito. Uma vez em Recife, eu estava em um jantar em torno de Jarbas Vasconcelos onde estava também o vice-presidente do Bradesco. De repente, ele sugeriu que se acabassem com as escolas públicas e se distribuíssem vouchers escolares para a população. Assim, cada um poderia escolher onde estudar. Ele não sabe que na maioria das cidades só tem uma escola pública?

A segunda razão foi que eu também queria ter uma experiência de vida mais longa no exterior. E a terceira foi a piora no ambiente no Brasil. O bolsonarismo é latente e não está só no governo. Está espalhado por todo canto. Hoje é impossível empreender no país sem se relacionar com o bolsonarismo. É do cara que vai ser seu fornecedor ao prestador de serviços jurídico, administrativo, financeiro. E é muito difícil lidar com essa mentalidade. O bolsonarismo é a maneira como esse grupo pensa estrategicamente, como eles são, como eles tocam a vida pessoal e os negócios. A maneira como tratam as mulheres ou subalternos no elo mais fraco da cadeia, a moral elástica, a falta de empatia total pelo outro. Basta ver as piadas que continuam fazendo. Claro que o machismo, a falta de educação e respeito sempre existiram no Brasil. Mas piorou muito. Esse comportamento deplorável aflorou. Quem tinha um pouquinho de pudor e se continha não tem mais. Isso me incomodava demais. Até porque o lado profissional sempre transborda para o pessoal nos negócios. Você acaba saindo para almoçar, convive com a pessoa, não tinha como evitar.

Durante a pandemia, ficou mais visível. Discutia muito com essas pessoas. Saí de três e fui expulso de outros três grupos de WhatsApp de empresários, prestadores de serviços, investidores. As conversas, a lógica como encaravam uma questão humanitária de saúde pública, como é a pandemia, os argumentos de por que iam manter os negócios abertos quando o mundo inteiro pregava o confinamento, era tudo absurdo. Invisto em alguns negócios, como uma empresa que fabrica película solares para vidros e outra de softwares para o sistema financeiro. Conversava com muita gente. A maioria absoluta dizia que não ia obedecer confinamento, que ia manter seus negócios abertos porque só ia morrer pobre e velho e “então foda-se”. Ouvi isso inúmeras vezes. Um deles até disse: “Se eu pegar, eu vou para o Einstein [referindo-se ao Albert Einstein, instituição de excelência no país] e então foda-se”. Você começa a pensar: eu quero fazer negócio com gente assim? Se eu faço, eu não estou colaborando com esse pensamento? Eu não quis mais.

Tenho uma filha de 10 anos com paralisia cerebral. E eu também percebi como o ambiente piorou para ela nos últimos dois anos. Na escola, mas principalmente no clube. O incômodo das pessoas com a presença dela, uma postura clara para explicitar que ela não pertencia àquele grupo, que a presença dela causava desconforto nas outras crianças e, obviamente, nos pais. Isso não era assim, mudou muito rapidamente. E se piorou no meu nível, imagina para as pessoas que têm muito menos do que eu.

Persio Arida (ex-presidente do BNDES e do Banco Central no governo FHC) disse que os ricos ainda apoiam Bolsonaro por medo de retaliações econômicas, como uma dura da Receita Federal, algo assim. Eu não acho que seja só isso. Existe um compartilhamento de valores de grande parte da elite com o bolsonarismo. Apoiam Bolsonaro porque compartilham e compactuam com valores que ele prega. Eu estava naquele almoço no BTG Pactual, que reuniu Bolsonaro, Paulo Guedes, com o crème de la crème da elite financeira ainda na campanha de 2018. Sabe quando ele foi mais aplaudido? Não foi quando ele falou de economia, de finanças. Foi quando ele fez “arminha” com a mão. Saiu aplaudido de pé. Isso não tem nada a ver com bolsa, com câmbio, com medo da Receita Federal, não é?

Há também uma reação frente à perda de poder social da elite brasileira. Não posso mais dar uns tapas na minha mulher, não posso não pagar minha empregada, tenho que conviver com um bando de gays, o que está acontecendo aqui? Veja o caso do ex-presidente da Caixa Econômica, o Pedro Guimarães, o caso do Neymar, ambos com denúncias graves de assédio sexual. Vai falar com esse pessoal e ver o que eles acham disso de verdade. Para eles, aquilo é um monte de mulher interesseira atrás de dinheiro. Não existe sequer a reflexão de que estavam cometendo um crime, fazendo algo absurdo. Essa gente quer viver como seus avós. E o engraçado é que essa revolta é de um bando de homem branco de 60 anos que está se sentindo oprimido, coitadinhos, não é? Uma vez, ouvi de um conhecido desses de quem perdi a amizade que “o bolsonarismo é libertador”. Isso explica tudo. É como se fosse possível voltar a falar e agir como trogloditas impunemente.

Tudo isso para dizer que o gatilho que me fez sair do Brasil foi o ambiente para a minha filha. É um incômodo muito forte. Eu sou economista, não sou sociólogo, antropólogo, mas sabe-se que vai levar anos para sairmos desse retrocesso civilizatório pelo qual estamos passando no Brasil. Põe aí dez anos, no mínimo. Meus filhos são pequenos, e não queria que eles vivessem esse clima nos anos mais importantes de formação. Minha grande frustração é ver pessoas bem-intencionadas e inteligentes que não perceberam o tamanho do buraco em que nos metemos e como vai ser difícil sair dele. Exigem de Lula posicionamentos absolutamente secundários, terciários até, para o momento em que vivemos. Ficam repetindo: “Ah, o Lula tem que ter uma agenda mais ampla”, “Ah, o Lula tem que ser menos à esquerda”, “Ah, e a economia digital, a ESG, as criptomoedas, a responsabilidade fiscal” e, claro, “Ah, a terceira via!”. Que terceira via? Que economia digital nessa hora? É como se você estivesse com um paciente na UTI com a aorta estourada, está saindo sangue pela boca e pelo nariz, e o médico sugere que ele se trate com alimentação saudável da horta!

Percebam: estamos no fundo do poço da merda. Parem com essa baboseira, com essas prioridades equivocadas. Não adianta ficar cobrando o impossível. E mais: Lula não é Emmanuel Macron (presidente da França). Não vai ser ele quem vai guiar o país para a economia digital. A elite cobra dele uma coisa que ele não sabe e não está capacitado para fazer. É preciso salvar o paciente primeiro. Isso é que é fundamental. É preciso sair desse buraco civilizatório e normalizar um pouco as instituições. Depois, vê-se o resto.

Eu nunca votei no Lula, será a primeira vez. O mercado financeiro ganhou dinheiro demais no governo dele, nem compara com o que ganha hoje com Bolsonaro. Tenho dificuldade de entender qual é o ponto de parte da elite ao dizer que Lula e Bolsonaro são iguais. Por isso, acho que essa briga se dá toda no campo da simbologia. É o que Lula é, é o que Bolsonaro é, o que eles defendem e o que eles representam. Não tem nada a ver com a economia. Eu não deixei de acreditar no Brasil. Por isso, estou abrindo um restaurante 100% brasileiro, com arte brasileira, que vai valorizar a cultura brasileira, que vai mostrar o Brasil bom, não o que machuca. Outro dia me perguntaram se vou receber bolsonaristas no restaurante. Bom, não é o dono que escolhe os clientes, mas assim como é difícil encontrar bolsonaristas em livrarias, imagino que será raro tê-los aqui.

Uol