Livro explica como Bolsonaro “surgiu” em 2013

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Foto: Reprodução

A formação da nova direita brasileira pós-2013, na qual germinou o bolsonarismo, talvez tenha sido o maior programa de saúde mental que o Brasil já conheceu, sugere o professor de filosofia da PUC-Rio Rodrigo Nunes, no recém-lançado “Do Transe à Vertigem”.

A ideia não se aplica à pandemia de Covid-19, um dos períodos mais penosos para a saúde mental do brasileiro. Nunes refere-se ao acolhimento de vítimas da recessão que encontraram no discurso do presidente Jair Bolsonaro (PL) uma explicação fácil para o fracasso econômico de suas vidas, apesar dos esforços individuais.

No coração do bolsonarismo, ele diz que habita a “baixa alta classe média”, termo emprestado do escritor inglês George Orwell.

São brasileiros de condição remediada, expostos a qualquer flutuação econômica. Pertencem à classe média ou média alta, mas não têm a riqueza acumulada e nem o capital cultural e social de pessoas com padrões semelhantes.

Para cima, ressentem-se da elite cultural. Para baixo, da ameaça de perda de marcadores sociais que os distinguem da pobreza e de outros setores vulneráveis. Na crise, tiveram os ganhos depreciados em relação ao lucro dos mais ricos e passaram a conviver com avanços simbólicos e materiais dos mais pobres. Ressentiram-se para cima e para baixo.

O sentimento de fracasso e o impedimento de ascender apenas por mérito no neoliberalismo os aglutinou num movimento que tinha as respostas.

“Diante desse sofrimento psíquico que é produzido pela impossibilidade estrutural de realizar uma das crenças mais disseminadas na nossa sociedade [de que qualquer um pode ser seu próprio patrão, de meritocracia e de se trabalhar com o que sonha] o que a extrema-direita faz é dizer ‘você falhou, mas a culpa não é sua, é da roubalheira do PT, dos artistas que se deixaram comprar pela Lei Rouanet, dos pobres que foram comprados pelas políticas de transferência de renda”, afirma o autor.

Na visão de Nunes, o bolsonarismo conseguiu agregar a “baixa alta classe média” sem boas conexões, acesso político ou herança familiar. Seja o concurseiro não aprovado que culpou as cotas, o homem que não conseguiu ser macho alfa e culpou o feminismo ou o adulto que se sentia intelectualmente inferior e culpou o marxismo cultural.

A análise aparece em um capítulo que traça um paralelo entre o bolsonarismo e o fenômeno do empreendedorismo. O livro tem sete ensaios, todos publicados de 2019 a 2022, sendo três fora do Brasil.

Ainda nesse tema, Nunes mostra como várias faces da “ideologia do empreendedorismo” (da “teologia da prosperidade” das igrejas evangélicas aos coachs) ganharam representações no bolsonarismo.

“É nesse nicho da baixa alta classe média que o bolsonarismo mais convicto se criou e se mantém. A própria família Bolsonaro, aliás, provavelmente pertenceria a ele se não tivesse descoberto um tino certeiro para a política”, escreve.

Para ele, à medida que a instabilidade política e econômica revelou a existência desse filão, “centenas de empresários falidos, roqueiros decadentes, atores fracassados, jornalistas de reputação duvidosa, subcelebridades ‘ativistas’, traders batalhadores, coaches medíocres, policiais e militares buscando complementar a renda” encontraram a chance uma nova carreira.

Saiu daí, por exemplo, a onda de youtubers de direita capaz de acumular capital político e econômico. Como influenciadores, pleiteiam cargos públicos, dão palestras, têm audiência fiel e acesso a Brasília. O autor defende que a extrema-direita seja “entendida também como um grande movimento empreendedorístico”.

Nos outros capítulos, Nunes se propõe a analisar diferentes elementos do bolsonarismo, como a construção do “cidadão de bem”, a defesa do negacionismo climático e da pandemia, a trollagem como estratégia de comunicação –o ensaio foi originalmente publicado na Folha– e a falsa simetria da polarização.

No fim, explora como o maior movimento de massa recente, dos protestos de 2013, foi capturado para resultar em base social ampla para a nova direita.

O título “Do Transe à Vertigem” representa as imagens da derrota da esquerda no golpe de 1964, em “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, e do impeachment de Dilma Rousseff em 2016 no documentário “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa.

A obra tenta trazer soluções a quem se opõe à extrema-direita, especificamente a esquerda. Ele indica que há o caminho da radicalização e o caminho para o centro.

O autor defende o que chama de radicalização programática. Nela, não é preciso se vestir de vermelho e falar o “último léxico aprovado pelo Twitter”, mas procurar se comunicar com as pessoas, sem exigir que compartilhem dos mesmos valores, e propor medidas radicais.

Trata-se de um reconhecimento da identidade política perdida entre tantas negociações nos últimos anos. “É preciso identificar os problemas reais que a gente enfrenta hoje e suas possíveis soluções, que são soluções necessariamente radicais diante da situação que nos encontramos”, afirma.

Duas questões são centrais no seu discurso, a desigualdade política e econômica e o aquecimento global, hoje renegado a um papel secundário. As soluções seriam propostas de política redistributiva e a transição para um novo regime energético.

“Só assim é possível construir uma força social que obrigue os outros a negociarem. É o momento de ser ambicioso, ousado e apostar na possibilidade de criar uma base social para esse tipo de transformação”, diz. Para ele, a consequência da inação é o inevitável fortalecimento da extrema-direita no médio prazo.

Folha