Novo Bolsa Família exclui famílias mais pobres

Destaque, Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Uol

Maria Anunciada da Silva Rodrigues, 27, tem cinco filhos que moram com ela em uma pequena casa no sítio Oiti, em Queimadas, semiárido paraibano. Sem trabalho, ela ganha o benefício mensal do Auxílio Brasil no valor de R$ 558 para sustentar a família.

O dinheiro, porém, não dá para suprir as necessidades básicas. “Eu conto com ajuda de um vizinho, da minha mãe e do CRAS (Centro de Referência da Assistência Social), que nos dá uma cesta básica por mês”, diz ela, que tem filhos de seis meses a 11 anos e se separou há cerca de três meses.

Enquanto as pessoas que moram só viram seus benefícios saltarem de R$ 89 para R$ 400, com a entrada em vigor dos reajustes do Auxílio Brasil, em janeiro, ela —e outras famílias com mais integrantes— teve apenas uma pequena recomposição e que nem compensou a inflação: o valor foi de R$ 535 (em 2019) para R$ 558 (agora).

Se atualizasse a inflação entre janeiro de 2019 e maio de 2022, o valor que Anunciada deveria receber iria para R$ 673 —quase R$ 100 a mais do que o montante atual.

Com a inflação em alta, a carne de boi sumiu do cardápio da família. “A gente come ovo, frango, salsicha, mortadela, às vezes um empanado, quando dá. A lata de óleo tem de passar o mês todo; eu economizo, mas nem sempre dá. Quando falta alguma coisa, vou pedir ao vizinho aqui de frente, que me ajuda muito”, diz.

Segundo a PEC (Proposta de Emenda da Constituição) aprovada na quinta pelo Senado — que aumenta o piso mínimo mensal do programa para R$ 600, mesmo com cinco filhos, Anunciada vai receber um valor similar ao de uma pessoa que mora só. A proposta ainda vai ser votada na Câmara esta semana, mas deve ser aprovada e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro.

Em síntese, o benefício de um pessoa que mora sozinha será seis vezes maior por pessoa (R$ 600 x R$ 100) que o da família rural de Queimadas.

O reajuste previsto de R$ 42 nem vai recompor a inflação de três anos atrás. “Vai pelo menos vai ser uma ajudinha para o mês, pelo menos dá para comprar alguma coisa a mais”, afirma.

A falta de um parâmetro para equiparar renda per capita é uma das críticas ao programa criado no lugar do Bolsa Família. Com a proposta de ampliar a bolsa mínima para R$ 600, essa distorção será ainda maior.

“A gente está apontando os erros de desenho do programa desde a proposta inicial. É erro em cima do erro. Com os R$ 600 seguindo o mesmo desenho pouco equitativo, essas distorções não são corrigidas e pioram o quadro”, diz Letícia Bartholo, ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania entre 2012 e 2016.

Segundo ela, com o novo modelo, famílias extensas que ganhavam mais de R$ 400 ficaram prejudicadas, porque não tiveram reajustes para recompor as perdas dos últimos anos.

Não tem sentido uma pessoa morando só ganhar o mesmo que uma mãe com cinco filhos. O pagamento deveria levar em conta o número de pessoas por família e renda. Esse modelo é certamente mais injusto que os desenhos anteriores.”Letícia Bartholo, ex-secretária adjunta da Senarc

Número de moradores por domicílio que recebe Auxílio Brasil (Abril/22):

1 – 3.711.665

2 – 4.708.429

3 – 4.773.277

4 – 2.899.106

5 – 1.234.146

6 – 493.266

7- 184.458

8 ou mais – 58.674

Ainda segundo dados de abril do Ministério da Cidadania, 16,2 milhões das 18 milhões de famílias beneficiárias do programa recebiam o piso de R$ 400 —ou seja, só 1,8 milhão de famílias ganhava acima desse valor.

Jamilton Fernandes Santos é coordenador estadual do Cadastro Único e do Auxílio Brasil na Bahia, estado com maior número de beneficiários no país (2,2 milhões de beneficiários). Ele conta que o ministério lançou o Auxílio Brasil sem ouvir os coordenadores locais.

O governo federal desconsiderou os 18 anos do programa Bolsa Família. Não houve a apresentação de um único estudo, pelo menos para nós, coordenadores e coordenadoras estaduais, sobre a viabilidade do Auxílio Brasil e suas bases conceituais e que justificasse a mudança.”Jamilton Fernandes Santos, coordenador estadual do CadÚnico

Santos trabalha no programa desde abril de 2004 e afirma que sempre se ouviam os gestores locais para definir uma mudança na política pública dos programas sociais.

“Em 2008, antes de mudar a versão do Cadastro Único, participei de consulta pública sobre o tema, enquanto técnico de equipe municipal”, afirma.

Ele afirma ainda que a alta para R$ 600 do piso só foi conhecida pelos gestores estaduais e municipais a partir de notícias veiculadas pela imprensa.

“Nós temos reuniões com a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania, periodicamente, mas só para comunicar as mudanças. Não somos chamados para contribuir com a formulação do programa”, diz.

Segundo ele, os coordenadores municipais têm relatado queixas das famílias com mais integrantes que recebem acima do piso porque não houve reajustes para recompor a inflação no período do atual governo.

“Agora, com os R$ 600, piora bastante essa falta de equidade. Para reformular um programa de transferência de renda, deve-se considerar per capita o resultado do benefício financeiro”, diz.

Segundo a economista, pesquisadora e ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome Tereza Campello, é um erro desconsiderar todos os critérios usados pelo Bolsa Família e criar um programa sem levar em conta especificidades das famílias beneficiárias.

“Criaram um monte de penduricalhos, argumentaram que tinham um programa que ia ter benefício, mas vemos injustiças absurdas. Se esse governo fosse sério, ele não estaria trabalhando no improviso em um tipo de ação que gera essas situações”, comenta.

Ainda para Campello, o aumento da bolsa mensal é bem-vindo porque existem muitas famílias com fome e o valor pago era baixo. Mas ela argumenta que o governo está aumentando o Auxílio Brasil de forma emergencial “apenas com fins eleitorais”.

O governo poderia ter construído um caminho para evitar o caos. A opção de Bolsonaro foi gerar 33 milhões de famintos. O governo não pode alegar que é uma emergência. A destruição do Bolsa Família queria somente apagar as digitais do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.”Tereza Campello, ex-ministra

Segundo dados da Vigisan (Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil), 33,1 milhões de brasileiros sofrem insegurança alimentar grave, ou seja, passam fome. Em 2020, quando foi realizada a primeira pesquisa deste tipo, eram 19 milhões de pessoas (ou 9,1% da população brasileira).

A coluna procurou o Ministério da Cidadania, na quarta e quinta-feira, para que explicasse como será feito o reajuste proposto, quais critérios seriam usados ou ampliados, mas não teve resposta.

Em sua fala para anunciar o aumento do Auxílio Brasil, Bolsonaro citou que a alta era uma resposta à inflação no país nos últimos meses. “É o governo entendendo os sofrimentos dos mais humildes e, dessa forma, buscando atender a todos”, disse, no último dia 23, em João Pessoa.

Recentemente, a coluna mostrou que o número de famílias em extrema pobreza (renda per capita de até R$ 105) cresceu tanto que, desde abril, já é maior do que o total de famílias beneficiárias do programa.

Existe hoje ainda uma fila de espera de 2,7 milhões de famílias para ingressarem no Auxílio Brasil. A ideia anunciada pelo governo é zerar essa fila com a aprovação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que autorizará o estado de emergência e gastos excedentes.

O programa Auxílio Brasil substituiu o Bolsa Família, criado em 2003. Segundo a lei aprovada no Congresso e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 30 de dezembro de 2021, o Auxílio Brasil deve atender:

Famílias em situação de extrema pobreza;

Famílias em situação de pobreza (renda per capita entre R$ 105,01 e R$ 210) que possuam gestantes, nutrizes ou pessoas com idade até 21 anos que tiverem concluído a educação básica ou estejam matriculadas.

Uol