Pesquisa vai estudar o DNA de 15 mil brasileiros
Foto: Joana Brandão Tavares/DW
Até 2023, um estudo inédito vai investigar aquele que é, possivelmente, o mapa genético mais miscigenado do mundo. Em uma parceria entre universidades públicas e a iniciativa privada, o projeto DNA do Brasil, lançado no dia 10 de dezembro, pretende desvendar questões relacionadas à saúde e, consequentemente, à origem de ao menos 15 mil brasileiros de 35 a 74 anos de idade.
A coordenadora deste estudo é a cientista Lygia da Veiga Pereira, professora da USP especialista em genética e autora dos livros Sequenciaram o genoma humano, e agora? e Células-tronco, promessas e realidades.
Em entrevista à DW Brasil, ela diz que encara a pesquisa como uma oportunidade para os cientistas encontrarem combinações genéticas que ainda não foram descritas em outras populações. Isso poderá, segundo a pesquisadora, ajudar a desenvolver mais estudos sobre a biologia humana e doenças que, futuramente, poderão ser prevenidas e tratadas de maneira ainda mais específica.
Outros países, na América do Norte, Europa e Ásia, já estudam o sequenciamento genético de suas populações há mais tempo. O caso do Brasil, no entanto, é um tanto peculiar. Com antepassados indígenas, africanos, europeus e asiáticos, por exemplo, o brasileiro tem no seu DNA uma imensa e complexa mistura, como a própria cientista define: “O Brasil é provavelmente o país com maior miscigenação no mundo.”
DW Brasil: A ideia do projeto DNA Brasil é mapear o genoma de 15 mil brasileiros. O que é o genoma e qual é a importância de fazer seu mapeamento?
Lygia da Veiga Pereira: O genoma é o conjunto dos nossos dados genéticos. Funciona como uma “receita” ou um conjunto de instruções que a natureza segue para a formação do ser humano e o funcionamento do seu organismo. Ele está presente no nosso corpo por meio dos genes, distribuídos nos 23 pares de cromossomos, em moléculas que reúnem quatro bases (A, C, T, G), repetidas em sequência. Os genes são as instruções da “receita”, ou seja, carregam toda a informação indispensável para o funcionamento do organismo. Ao sequenciar o nosso DNA, podemos começar a entender como nossos genes determinam quem nós somos.
Quais experimentos e estudos serão feitos a partir do mapeamento desses milhares de DNAs, e o que poderá ser desvendado, prevenido e tratado por meio de suas conclusões?
O projeto DNA do Brasil tem três grandes objetivos: incluir o Brasil e aumentar a representatividade da nossa população no mapa dos estudos genômicos realizados no mundo; identificar variações genéticas relacionadas às características de saúde da população (genes associados a doenças e a características morfológicas); e estudar a nossa identidade, detectando componentes genéticos de nativos americanos, ameríndios e africanos para entender melhor a nossa história e a evolução do povo brasileiro.
Nesse sentido, decifrar o genoma é entender o ser humano: suas origens, sua evolução, seu organismo e a sua saúde. É, portanto, uma porta aberta para novos avanços e descobertas na área da saúde. Hoje é possível, por exemplo, analisar as predisposições genéticas do indivíduo a certas doenças bem como a sua resposta a medicamentos, além de desenvolver novas terapias para diversas doenças.
O projeto é uma parceria com empresas privadas. Como elas entrarão na pesquisa? E o governo poderia ter um papel na iniciativa?
Sim, trata-se de uma parceria entre a universidade pública e a iniciativa privada. Como cientistas, nosso interesse é o conhecimento e a interpretação dos dados. Os parceiros da iniciativa privada estão proporcionando a infraestrutura necessária para viabilizar a execução do projeto. A Dasa, líder em medicina diagnóstica no Brasil, subsidiará integralmente o sequenciamento das primeiras três mil amostras, e apresentou uma proposta muito competitiva para as outras 12 mil. O sequenciamento será realizado com tecnologia de última geração, chamada NovaSeq, que sequencia 48 genomas humanos em 72 horas.
O Google Cloud será responsável pelo armazenamento e processamento dos dados e sua experiência nesse campo com outros projetos científicos internacionais será de muito valor. Cada parceiro contribui com sua expertise, sem qualquer interferência no projeto. O governo deve ter um papel importante agora que o projeto foi lançado. O Ministério da Saúde já sinalizou que vai apoiá-lo e encomendou à nossa equipe um projeto maior, que sequencie um número ainda maior de brasileiros.
A população brasileira é bastante heterogênea, já que descende de indígenas, africanos, europeus e asiáticos, por exemplo. Isso representa um desafio para a ciência? Há outros lugares no mundo com índices tão altos de miscigenação?
Isso é um desafio porque para conseguirmos identificar variantes genéticas envolvidas em determinadas doenças precisaremos de um grande número de indivíduos sequenciados. Por outro lado, representa também uma grande oportunidade, pois encontraremos combinações genéticas ainda não descritas em outras populações, que poderão nos ensinar muito sobre a biologia humana e doenças. O Brasil é provavelmente o país com maior miscigenação no mundo.
À parte a questão médica, focando mais em termos de origens e ascendência, há a possibilidade de o Brasil investir também em uma ampla investigação do DNA do próprio povo?
Este é exatamente um dos objetivos principais do projeto: a partir do DNA, aprender sobre a origem da nossa população, saber exatamente a genética dos grupos populacionais originais, e como eles estão misturados no brasileiro atual.
O fato de o povo ser tão misturado pode nos indicar vantagens e desvantagens diretas em relação à saúde? Ou há muitas outras variáveis, como o clima e hábitos saudáveis ou não, que se sobrepõem às questões genéticas?
Certamente, a miscigenação do brasileiro é um diferencial na saúde. Como nunca mapeamos nossa genética, ainda não conseguimos identificar o que é de fato vantagens ou desvantagens das nossas características genéticas. Atualmente, para interpretar os testes genéticos de seus pacientes, os médicos se baseiam em bancos com dados de povos europeus, norte-americanos e asiáticos, muito diferentes do brasileiro.
Com os dados do DNA do Brasil, vamos ter um banco que permitirá uma melhora significativa na interpretação dos testes genéticos, com diversidade e matéria-prima para responder perguntas da ciência, como: alterações em genes relacionadas, ou não, com doenças, personalização de tratamentos (que respondem melhor de acordo com as características genéticas individuais), entre outros.
Quem são as pessoas que participarão do projeto? Vocês vão focar em grupos específicos, como moradores de centros urbanos? Haverá divisão por cotas raciais, densidade populacional, por exemplo?
O pontapé inicial do DNA do Brasil será dado com os participantes do projeto ELSA-Brasil, o maior estudo epidemiológico realizado no país por pesquisadores de seis universidades (USP, FIOCRUZ-Rio de Janeiro, e as universidades federais da Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul), com apoio do Ministério da Saúde. É um projeto reúne dados clínicos de mais de 15 mil brasileiros, entre 35 e 74 anos, que poderão ser cruzados com as informações genéticas que serão geradas a partir do sequenciamento do DNA desses brasileiros. O ELSA-Brasil continua avaliando os seus participantes e realizará a quarta série de exames entre 2021-23.