
Ataque de Bolsonaro a jornalista dá impeachment
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O destempero verbal recorrente do presidente Jair Bolsonaro, que ontem fez insulto de conotação sexual à jornalista Patrícia Campos Mello, da “Folha de S. Paulo”, deu início a uma discussão jurídica sobre quebra de decoro e crime de responsabilidade no exercício do cargo. Especialistas em direito constitucional consultados pelo Valor concordam que o comportamento do presidente infringe o artigo 9º, inciso VII, da Lei 1.079/1950, a chamada Lei do Impeachment, violando, ainda, o artigo 85 da Constituição, inciso V, sobre probidade na administração.
Mesmo que um processo de impeachment por quebra de decoro encontre amparo legal, segundo juristas, o entrave para punir Bolsonaro está na esfera política. Para um pedido de impeachment prosperar, é preciso que dois terços dos deputados da Câmara acatem a denúncia.
A jornalista que teve a honra atacada pelo presidente produziu reportagem na eleição de 2018 sobre o impulsionamento de mensagens em massa contra o PT, uma semana antes do 2º turno.
Ontem, Bolsonaro disse, ao sair do Palácio da Alvorada: “Ela [a repórter] queria um furo. Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim”. Ao final da afirmação, o presidente deu risadas, acompanhado por seus fãs. E continuou: “E outra, se você fez fake news contra o PT, menos com menos dá mais na matemática, se eu for mentir contra o PT, eu tô falando bem, porque o PT só fez besteira (sic)”. Patrícia Campos Mello havia sido atacada, na semana passada, em depoimento de Hans River, ex-funcionário da empresa Yacows, uma das envolvidas no disparo em massa de mensagens, à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News. River disse que a jornalista queria informação em troca de sexo, e poderá ser indiciado por mentir aos parlamentares.
Integrante da Comissão Arns e professor de Direito da Fundação Getulio Vargas, o advogado Oscar Vilhena afirma que a ofensa de Bolsonaro a mulheres é quebra de decoro e que “não se pode esperar que um presidente da República destrate pessoas desta maneira”. Apesar de ver claramente a possibilidade técnico-jurídica de instalação de processo de impeachment, Vilhena diz que se trata de um processo de caráter predominantemente político. “A previsão legal está lá. Constitui quebra de decoro. Agora, há que se ter condição política. Nunca houve no Brasil processo de impeachment por quebra de decoro. Nunca foi testado. É uma cláusula muito aberta.”
Especialista em direito eleitoral e constitucional, o advogado Tony Chalita observa que, apesar de a incompatibilidade com o decoro admitir interpretação aberta, o caso de Bolsonaro tem o agravante de se tratar de conduta que se repete semanalmente. “Uma má interpretação [da lei] não pode levar ao procedimento de afastamento. Agora, quando um presidente semanalmente se manifesta de forma absolutamente contrária ao que se espera do chefe de Estado, aí a gente começa a ter, por condutas reiteradas, um cenário diferente. Nada impede que haja denúncias de cidadãos por conta desse comportamento inadmissível”.
Para Vilhena, da FGV, o caso precisa ser analisado em três dimensões. Uma é o plano da defesa pessoal, em que a jornalista poderá ajuizar ações com pedido de indenização e ação penal privada contra o presidente pela honra atingida. Um segundo plano seria o jurídico e político, em que se analisariam a quebra de decoro e o crime de responsabilidade por atentar contra a probidade administrativa. Num terceiro nível, organizações de imprensa e de defesa das mulheres poderiam, ainda, levar o caso à Organização dos Estados Americanos (OEA), apresentando petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Isso exigiria do governo brasileiro respostas sobre falas do presidente que afrontam os direitos humanos. Segundo Vilhena, a fala de Bolsonaro poderia ser interpretada como dupla violação: além de desrespeitar o direito à informação e a liberdade de imprensa, o presidente viola a dignidade das mulheres.
“É crime de responsabilidade o presidente agir dessa maneira. É indecoroso. No meu juízo, é possível que se instaure processo por violação do decoro. Porém, a continuidade deste processo entraria no campo da política”, explica o advogado Conrado Almeida Corrêa Gontijo, doutor em direito penal pela USP. Gontijo considera que a hipótese de crime de responsabilidade é mais clara do que o crime contra a honra, onde a jornalista poderia tentar obter uma retratação do presidente da República.
A lei de responsabilidade permite “a qualquer cidadão denunciar o presidente da República ou ministro de Estado por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados”.
Para Vera Chemim, advogada constitucionalista, mestre em administração pública pela FGV, “o presidente mistura a dimensão pessoal com a dimensão que um cargo desta natureza exige”. “É o mais alto cargo da administração pública do país. Obviamente, deveria reservar-se em relação à forma como se expressa em público.” A Lei 1.079 seria “a única linha possível para enquadrar o presidente”, diz Chemim. “Do ponto de vista realista, não sei até que ponto uma acusação desta teria continuidade. É um acúmulo de procedimentos completamente contrários à dignidade do cargo e eventualmente a Câmara poderia acatar [um pedido de impeachment]”.
Além de considerar a fala do presidente absurda, a advogada sustenta que Bolsonaro “desrespeita o princípio da impessoalidade e moralidade administrativa, previstos no artigo 37 da Constituição”. “Ele não pode proceder de uma forma indigna, imoral, indecorosa no exercício da função pública.”
Políticos, parlamentares e entidades de imprensa defenderam a jornalista. A Associação Brasileira de Imprensa pediu à Procuradoria-Geral da República abertura de impeachment. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e o Observatório da Liberdade de Imprensa da Ordem dos Advogados do Brasil divulgaram nota conjunta em que repudiam a fala do presidente e o desrespeito pela imprensa.