Deputada indígena acusa Funai de querer “colonizar”
Foto: GIOVANNI BELLO
A notícia da possível nomeação de um ex-missionário evangélico para a chefia de um órgão na Funai, chegou à primeira e única deputada indígena, no momento em que ela estava fora do país para uma conferência no Reino Unido sobre a violência na Amazônia.
“Os indígenas isolados merecem proteção, e não novamente esse processo de colonização”, diz Joênia Wapixana (Rede-RR) sobre a indicação do teólogo e antropólogo Ricardo Lopes Dias para assumir a chefia do órgão da Fundação Nacional do Índio responsável pela proteção a indígenas isolados.
Lopes Dias trabalhou como missionário evangélico na Amazônia por uma década, entre 1997 e 2007 integrando a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização com origem nos EUA que promove a evangelização de indígenas brasileiros desde os anos 1950.
Para Joênia Wapichanaela, profissionais que trabalhem com esses indígenas devem ter uma “visão antropológica, preparados para lidar com a diferença cultural”.
“Colocar uma pessoa que tem uma política e pensamento diferentes é colocar em risco o direito desses povos”, afirma em entrevista à BBC News Brasil em uma sala da Universidade de Oxford, onde ela foi convidada para falar sobre seu trabalho como deputada federal, ao lado de outras lideranças indígenas como o cacique kayapó Raoni Metuktire e o xamã Davi Kopenawa, líder Yanomami.
Joênia Batista de Carvalho, de 45 anos, é do povo Wapixana — ela usa o nome de seu povo como sobrenome. Eleita com um total de 8.491 votos e única deputada federal emplacada por seu partido, a Rede, ela completa em fevereiro seu primeiro ano de mandato — um que foi repleto de embates entre o presidente Jair Bolsonaro, e os indígenas brasileiros.
“Parece que ele nunca leu a Constituição”, diz ela, sobre as declarações mais recentes do presidente brasileiro sobre indígenas — há duas semanas, ele afirmou que “o índio está evoluindo, cada vez mais, o índio é um ser humano igual nós”.
Joênia, que tem várias “primeiras vezes” no currículo, foi também a primeira indígena brasileira a tornar-se advogada, e costuma citar a proteção aos povos indígenas garantida pela Carta Magna do Brasil, promulgada em 1988.
“Ou, se Bolsonaro leu a Constituição, não conseguiu aceitá-la, e se ele não consegue aceitar a Constituição, não serve para ser presidente, já que quando tomou posse se comprometeu a respeitar a Constituição, e não está respeitando.”
Ela diz, também, que o presidente expressa um pensamento “desumano, desrespeitoso e totalmente racista”.
Os direitos dos povos indígenas no Brasil têm um capítulo específico na Constituição, que assegura o respeito a sua organização social, costumes, crenças e tradições, além do direito às terras que ocupam. “Tenho vergonha do presidente e me sinto atacada. Ele deveria ter mais proximidade e conhecer o direito dos indígenas.”
O texto constitucional também estabelece que é dever da União demarcar as terras e protegê-las. Em 2019, sob Bolsonaro, as demarcações de terras indígenas no Brasil foram zeradas, cumprindo algo que o presidente costuma repetir que deseja fazer, ou deixar de fazer.
Por esses motivos e outras propostas por parte do presidente, ela avalia que seu primeiro ano de mandato teve de focar em assegurar que não houvesse mudanças drásticas retrocedendo as conquistas indígenas no Brasil.
“É um dos piores cenários que temos visto nos últimos anos. O nosso receio é que possa piorar.”
“No linguajar dos povos indígenas se chama resistência”, resume Joênia sobre sua atuação no Congresso.
Em um ano a única deputada federal eleita pela Rede, parte de uma minoria de oposição na Câmara, propôs 14 projetos de lei, decreto legislativo ou emenda à Constituição.
Os nove projetos de lei de que foi autora ou coautora variam entre reverter em benefício dos povos indígenas os valores arrecadados em pagamento de multas por infração ambiental cometida em terras indígenas, por exemplo, e mudar o nome do “Dia do Índio” para “Dia dos Povos Indígenas” (para “ressaltar não o valor do indivíduo estigmatizado ‘índio’, mas sim o valor dos povos indígenas para a sociedade brasileira”, diz a justificativa do texto). Os projetos ainda estão tramitando.
Participou das CPIs (Comissão Parlamentar de Inquérito) de Brumadinho e sobre o Óleo no Nordeste, e passou a integrar comissões como as de Constituição e Justiça; de Cidadania, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Minas e Energias e Direitos Humanos e Minorias.
Mas o que considera sua maior vitória foi a devolução da Funai ao Ministério da Justiça e ao órgão a atribuição de demarcar terra indígenas. Quando assumiu, Bolsonaro havia transferido a Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura, influenciado pela bancada ruralista, e retirado do órgão indigenista a atribuição de demarcar terras indígenas. O Congresso, e mais tarde o Supremo Tribunal Federal, reverteram a medida.
Também destaca o arquivamento da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 343/17, que tiraria do Congresso a competência para autorizar a mineração e a exploração de recursos hídricos e transferiria a competência para o Executivo.
Para 2020, ela prevê ainda mais dificuldades.
Bolsonaro tem repetido que pretende abrir terras indígenas para atividades econômicas de grande escala, como a mineração e o agronegócio.
Joênia observa que a Constituição determina uma oitiva a povos indígenas para que sejam ouvidos sobre esse tipo de ato legislativo, com debates e diálogos. O rito é exigente, diz ela, que é otimista ao mencionar essas seguranças jurídicas.
“Estamos trabalhando com direitos humanos, cláusulas pétreas que seriam afetadas.”
Além disso, lembra que o Brasil teve desastres como os de Mariana e Brumadinho:
“O Brasil tem que sanar essas falhas, não investir em outras. Esse debate é necessário fazer. É viável? Para quem? Que benefício vai trazer?”
Bolsonaro também fala em zerar a demarcação de terras indígenas (o que fez em 2019) — costuma repetir que “há muita terra para poucos índios” — e conceder títulos de terras para comunidades indígenas para que possam negociá-las.
As terras indígenas demarcadas pertencem à União e são destinadas à “posse permanente” e ao “usufruto exclusivo” dos indígenas, não podendo ser vendidas.
“Não há aí uma intenção de beneficiar os povos indígenas, pelo contrário”, comenta Joênia.
“A concessão de títulos individuais é porque existiria uma possibilidade de negociar — e aí vemos o que acontece. Perde-se a terra, vendida por um preço baixo. A estratégia é desapossar e querer fazer com que a terra indígena vá para a mão de terceiros.”
A medida, de qualquer forma, exigiria uma mudança constitucional.
Quanto à demarcação, diz que Bolsonaro “deveria estar respondendo por deixar de cumprir um dever que é constitucional”.
Hoje, 12,6% do território nacional foram demarcados como terras indígenas. E os indígenas representam 0,4% da população do país, com 817,9 mil integrantes.
“Os povos indígenas já tiveram quase a totalidade do território do Brasil”, diz Joênia. “Só nos restou 12%, ainda ameaçados. Se somos 0,4% da população, temos que nos perguntar — o que aconteceu com os demais? Éramos mais de 5 milhões. Alguma coisa deu errada. Genocídio?”
“O índio não vê porcentagem, hectares. Vemos o lar, o habitat, vai além da construção de uma casa. Temos uma relação espiritual com a terra, as áreas nativas, e cuidamos da terra. É o contrário da declaração de Bolsonaro: é muito índio para pouca terra.”
Por isso, 2020 será um ano de bastante fiscalização ao Executivo, além de acompanhamento das propostas que fez no ano passado e da aplicação de emendas parlamentares. que conseguiu.
De imediato, em sua volta para o Brasil, diz Joênia, ela vai analisar parecer usado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, para travar a demarcação de 17 terras indígenas no país — reportagem do jornal Folha de S.Paulo mostrou como Moro devolveu processos à Funai usando uma interpretação previamente usada pelo ex-presidente Michel Temer, mas com uma tese não prevista na Constituição.
“Se for o caso, vamos ver a possibilidade de sustar esse ato.”