Famílias fogem há anos dos amigos dos Bolsonaro
Foto: IGO ESTRELA/METRÓPOLES
Júlia* tem 8 anos e nunca frequentou a escola. A garota sabe ler e escrever, mas tudo o que aprendeu foi com a mãe. Há dois meses, ela teve febre alta, dores pelo corpo e manchas na pele. A mulher acredita que a filha contraiu dengue, mas não confirmou o diagnóstico porque não a levou ao hospital. O fato de a menina ter sido alijada de direitos básicos fundamentais não significa negligência dos pais. Ela e a família são foragidas de uma milícia que controla a Zona Oeste do Rio de Janeiro.
O Metrópoles conversou com outras cinco famílias que há seis anos vivem escondidas de grupos armados que as caçam no país inteiro. São 21 pessoas morando em apenas dois cômodos sem água e sem luz. Com medo, elas se estabelecem por pouco tempo no mesmo lugar. Todas foram expulsas do Condomínio Ferrara, em Campo Grande, entre 2014 e 2015: algumas por não conseguirem pagar taxas aos milicianos, que chegavam a cobrar R$ 750 por mês; outras, por questionarem os aportes extras.
O nome delas consta em processos abertos a fim de investigar policiais civis e militares, praças e oficiais das Forças Armadas e até agentes penitenciários que formaram um poder paralelo no Rio. Como pano de fundo, os agentes do Estado começaram a cobrar valores dos moradores para supostamente garantir proteção.
A denúncia feita por essas e outras famílias levaram a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco-IE) e o Ministério Público do Rio (MPRJ) a colocar atrás das grades, na primeira fase da Operação Tentáculos, em 2014, 21 milicianos da chamada Liga da Justiça, a maior e mais violenta organização criminosa da Zona Oeste da cidade.
Marcadas para morrer, elas passaram a viver como ciganos. Uma das famílias conta já ter morado em sete unidades da Federação. “Sempre que sentimos ameaça, saímos com a roupa do corpo. É uma saga que já dura seis anos”, diz um dos fugitivos.
As seis famílias chegaram a ser inscritas em programas de proteção a testemunha do governo federal, mas todas pediram para sair por não se sentirem seguras. “O que eles fazem é só tirar a gente de um lugar e colocar em outro. Não há qualquer tipo de assistência psicológica para a gente e para as crianças”, relata.
Uma delas, ao ser retirada do Rio de Janeiro, foi instalada no hotel de uma cidade do DF. “Era aquele tipo de hotel que mais parece motel: só entrava prostituta e traficante e eu naquele lugar com minha esposa e meus filhos”, relembra.
Após diversas queixas, eles foram transferidos para um barraco no município de uma pequena cidade de Goiás. O homem conta ter tentado, junto ao programa, tirar documentos novos, com nomes diferentes, para que os filhos pudessem se matricular na escola e ele a esposa tivessem oportunidade de tentar recolocação no mercado formal de trabalho.
“Mas essa história de que o programa muda seu nome e te dá nova vida é uma falácia. Pedimos inúmeras vezes e a resposta sempre era a de que não tinham como fazer”, denuncia.
Um outro fugitivo da milícia carioca conta que a esposa, grávida de quatro meses, sofreu um aborto espontâneo no meio da rua e não pôde procurar uma unidade de saúde. “Não temos coragem de deixar nossos registros em nenhum órgão público. Minha esposa teve esse aborto e, até hoje, não conseguiu ir a um ginecologista saber se está tudo bem com a saúde dela. É uma situação deprimente a que vivemos.”
No dia em que o Metrópoles fez esta entrevista com as famílias, elas já se preparavam para levantar acampamento e seguir para outro destino desconhecido. “Quando temos a mínima desconfiança de que podemos ser descobertos, vamos para outro lugar. Sempre morando de favor em algum terreno. Quando não conseguimos, ficamos na rua mesmo”, conta um fugitivo, que explicou por que as famílias decidiram andar juntas. “A gente se ajuda e tem mais chance de se proteger em caso de ataque.”
A reportagem teve acesso à relação de mantimentos enviado àqueles que estavam sob o guarda-chuva dos programas de proteção mantidos pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A cada 15 dias, as famílias tinham de escolher entre receber R$ 150 em dinheiro ou uma cesta com produtos de higiene e alimentação.
“O problema não era a cesta. Tinha gente com criança recém-nascida e eles não mandavam nenhum produto para fazer mamadeira. Um dia, fui explicar que o bebê ainda não mastigava e responderam que não poderiam fazer nada. O programa de proteção à testemunha neste país é uma humilhação”, revolta-se uma mulher.
Sem acesso a energia elétrica e água potável, o grupo prepara alimentos com água doada pela vizinhança e cozinha em um fogão improvisado, feito de tijolos. “Tudo é precário. Aqui, ainda estamos relativamente bem porque conseguimos ficar nessa obra inacabada de favor, mas teremos de sair logo”, diz ela.
Além de fornecer poucos meios de subsistência, os programas de proteção à testemunha, segundo as famílias, não inspiram segurança. “Já aconteceu de uma servidora vir entregar o dinheiro [os R$ 150] acompanhada de um homem que não tinha nada a ver com o programa. Sem contar as vezes que chegavam sem dar nenhuma explicação e falavam que precisavam transferir a gente para outro lugar. Faziam isso sendo muito espalhafatosos, não eram nada discretos”, conta.
Sem confiança no programa, a primeira família ameaçada pela milícia pediu desligamento dois meses depois. A segunda saiu porque não se sentiu segura.
“Quando fizeram a segunda fase da Operação Tentáculos e prenderam mais milicianos, a servidora do programa veio aqui dizer que a gente poderia voltar para o Rio, porque todo mundo já estava preso. Eu respondi que agora é que tínhamos de nos esconder mesmo, porque matar quem ajudou a prender os chefões da milícia seria questão de honra para eles. Depois disso, eu mesmo pedi o desligamento do programa. Sinto mais segurança me escondendo sem ajuda do Estado”, relata um dos foragidos.
No Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, há 563 pessoas inscritas em três programas de proteção à testemunha. São eles: Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH); Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM); e Programa Federal de Assistência e Proteção a Vítimas e Testemunhas (Provita).
A permanência das famílias em algumas dessas plataformas dura de três a seis meses, mas o prazo pode ser prorrogado dependendo do caso. O Metrópoles questionou a pasta comandada pela ministra Damares Alves sobre as queixas das seis famílias em relação aos programas. Por meio de nota, o ministério não justificou as falhas apontadas, mas explicou o funcionamento das iniciativas.
“Os amparados pelos programas têm direito à segurança na residência, escolta em deslocamentos, preservação de identidade e dados, ajuda financeira mensal, apoio a assistência social, médica e psicológica”, diz o texto enviado pela assessoria de comunicação.
Em atividade desde os anos de 1970 no Rio de Janeiro como uma alternativa ao combate ao tráfico nas favelas cariocas, as milícias começaram a ganhar visibilidade – e força – a partir dos anos 2000. Em 2006, os grupos investiram nas eleições municipais e chegaram a eleger representantes na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa do estado.
Com o ganho de poder político, as organizações modificaram as atividades e passaram a atuar de maneira mais discreta, expandindo a atuação para municípios da região metropolitana.
O braço político das milícias cariocas foi exposto apenas em 2008, com a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o assunto. Marielle Franco, então assessora do deputado estadual Marcelo Freixo (PSol), relator da CPI, participou da construção do relatório que pediu o indiciamento de 226 pessoas.
Posteriormente, Marielle foi eleita vereadora, mas acabou sendo assassinada em março de 2018. Após a repercussão internacional do assassinato da parlamentar que denunciava a violência policial, as milícias cariocas voltaram aos holofotes.
Sete anos antes da morte de Marielle, a juíza Patrícia Accioli também teve sua execução atribuída a milicianos. A magistrada havia sido responsável pela prisão de pelo menos 60 policiais ligados a grupos de extermínio e estava jurada de morte. Ao todo, 11 PMs foram condenados pelo crime.