Ignorância militarista se une a fanatismo religioso
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Curiosos se aproximam: aconteceu algo no templo? Na manhã da última sexta-feira de janeiro, viaturas da Polícia Militar dominam arredores de uma Igreja Universal do Reino de Deus na zona leste de São Paulo. Nenhuma ocorrência: ali estão para orar.
Homens fardados, suas armas na cintura, tomam os bancos. Cenas afins se repetem Brasil afora, às vezes em quartéis das PMs de cada estado.
Eles saem dessas reuniões com o estômago cheio (servir café da manhã é praxe) e a mente fornida com orações sugeridas por um pastor que, como eles, pode ser militar.
A congregação do bispo Edir Macedo, que já realiza extenso trabalho missionário com presidiários, passou a atuar também na outra ponta. É o UFP (Universal nas Forças Policiais), que se pôs como missão defender “os ensinamentos da Bíblia nas forças de Segurança Pública, Forças Armadas e órgãos governamentais”.
Apresentado em 2018, o projeto está sob batuta de um ex-capelão da PM maranhense, o major Ronivaldo Negreiros, o Roni. Dias atrás, um vídeo institucional viralizou nas redes sociais. A peça afirma que a meta é dar “livramento e força” a policiais e familiares, alvos do programa que alcançou cerca de um milhão de pessoas em 2019, segundo a igreja.
Na internet, alguns definiram o programa como “milícia do Edir Macedo”, outros ressaltaram seu valor como mais um serviço que a Universal oferece para preencher crateras que o poder público não ocupa.
Na pregação acompanhada pela Folha, voluntários da igreja vestiam camisetas com o símbolo do UFP: o formato do distintivo da PM com a pomba e o coração da Universal dentro.
A jornalista Patrícia Lages palestrou sobre educação financeira. “Ter inadimplência, para um policial, é pior do que para qualquer pessoa. Imagine estar trabalhando na rua e ter o celular tocando, gente ligando com cobrança”, diz.
No fim, um bolo de festa coberto de glacê branco. Nada festivo é um dos temas centrais ao UFP: a saúde mental em frangalhos num país onde mais policiais se mataram (104) do que morreram em operações (87), segundo o 13ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em 2019 com números do ano anterior.
“A quantidade de suicídios é absurda. Lidamos com coisas psicologicamente muito difíceis”, diz à Folha o tenente Tiago Pereira de Souza, relações públicas do 19º batalhão da PM-SP.
Ele anuncia ao batalhão: começará uma oração ecumênica. “Aqueles que não se sentirem à vontade, podem se retirar, sem nenhum problema”. A reportagem não viu ninguém sair.
É dentro da Universal que acontece uma cerimônia de entrega de medalhas para aquele pelotão, com cerca de 600 membros. Nessas reuniões, cena comum é a doação de livros com o selo da Universal, como “Casamento Blindado” (dicas matrimoniais elaboradas por filha e genro do bispo Edir) e “Como Vencer suas Guerras pela Fé”.
Muitos ali não são da Universal. Tem quem nem a curta muito, caso de uma oficial que não quis se identificar: Ela diz ter ido a um encontro de casais porque estava com problemas com o meu marido, no Templo de Salomão, mas não gostou do evento.
A cada cinco minutos, segundo ela, o pastor pedia dinheiro. A abordagem do líder religioso que orienta os batalhões é diferente, diz.
A Universal classifica como uma “campanha sórdida contra ela” a ideia de que estaria formando um exército particular de policiais com esse programa. O tenente Souza se dá como exemplo. “Não se fala da igreja, se fala de Deus. Sou da Congregação Cristã do Brasil e participo.”
O motivo da adesão é unânime entre entrevistados: a pressão do trabalho faz qualquer tipo de ajuda ser bem-vinda.
À frente do UFP, o pastor Roni contou, em papo gravado com Edir Macedo, que foi da tropa de choque da PM paulista, quando se tornou “uma pessoa que, poderia dizer, era um perigo para a sociedade”.
A ansiedade era tamanha que dormia com uma arma sob o travesseiro, diz. “Chegou ao ponto de achar que a vida não tinha mais sentido. Era um policial depressivo.”
Ele conta que sua atitude mudou após a conversão. “O indivíduo que enfrentava a polícia… Dentro dele habitava o mal, uma força maior que ele é que fazia ele comete aquela atrocidade. Não conseguia mais ver o homem criminosos, pessoa que eu, policial, tinha que matar.”
À Folha ele exemplifica. Em 2018, três ladrões lhe tomaram carro, documentos e celulares, um deles menor de idade. Acabaram capturados. “Preguei para aqueles rapazes que tinham acabado de colocar uma arma na minha cabeça. Diria que quem tem domínio da palavra de Deus, e sou testemunha, se torna uma pessoa mais humanitária.”
A rigor, não há impeditivo para o trânsito de religiosos em quartéis, diz Rafael Alcadipani, professor da FGV-SP e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Basta lembrar de grupos como os PMs de Cristo e o templo na sede do Bope no Rio, isso para ficar só no segmento evangélico.
O problema é o policial se voltar à Bíblia para justificar uma maior letalidade, afirma. E quem procura acha. As mesmas Escrituras que zelam pelo mandamento “não matarás”, afinal, têm versículos como “se o ladrão for achado arrombando uma casa e, sendo ferido, morrer, quem o feriu não será culpado do sangue”.
“Já vi grupos em que os caras colocam a Bíblia junto, para a arma ser benzida”, conta Alcadipani. “Há aqueles que se sentem ungidos por Deus para matar. É a lógica do bem contra o mal, estou do lado de Deus contra o demônio.”
O cabo Fábio Almeida, que vai às reuniões do UFP, diz não ver relação entre os valores bíblicos e os da PM. “A polícia é legalista. Não precisa ter uma religião por trás para nortear o comportamento do policial. Isso vem de berço, além da conduta profissional.”
Já a mistura entre fé e labuta rendeu ao major Roni uma citação na Justiça. Em 2012, a 4ª Vara do Trabalho de São Luís (MA) condenou a Universal a pagar R$ 80 mil por usar militares em sua segurança privada, sentença depois rejeitada no Tribunal Regional do Trabalho do Maranhão (TRT-MA).
Roni era o superior hierárquico da PM que elaborava a escala de plantões de oficiais na igreja, segundo o Ministério Público do Trabalho, o que foi negado pelas testemunhas ouvidas pela juíza do caso.
A procuradora havia apontado direitos trabalhistas ausentes na prática, como férias e 13º salário, e um acúmulo de atividades que estressava esses oficiais, prejudicando seu desempenho. A igreja, para ela, acabava se valendo de uma força aparelhada pelo Estado em benefício próprio.
Questionada, a igreja afirmou que “a tentativa de ligar um processo de oito anos atrás –e que, ao fim, deu razão à Universal–, com uma pauta sobre um programa social e humanitário, é tentar torcer a realidade para que ela se encaixe numa versão preconceituosa dos fatos”.
Redação com Folha