Conheça rotina de profissionais da saúde contra coronavírus

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Foto: GETTY IMAGES

No dia 4 de março, a infectologista Fernanda* dava plantão no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo (SP), quando atendeu um paciente com suspeita de coronavírus. O homem, que tem por volta de 40 anos, tinha febre e tosse intensa. Ele era considerado caso suspeito, pois havia mantido contato com o empresário paulista de 61 anos, primeiro caso diagnosticado no Brasil com a covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.

Para atender o paciente, ela seguiu as orientações dadas pelo Ministério da Saúde aos profissionais da saúde e usou equipamentos de proteção individual: gorro, máscara N95, luvas, aventais descartáveis e óculos protetores. Com os aparatos, seguiu para uma sala de isolamento com pressão negativa, onde costumam ser atendidos pacientes com doenças virais, para evitar a propagação.

Com experiência em outras pandemias — ela fez atendimentos durante a explosão de casos de H1N1 em 2009 —, Fernanda ficou receosa em relação ao paciente. “Mesmo com o material de proteção adequado, me senti temerosa e totalmente vulnerável. O vírus pode ser transmitido por gotículas e eu tive de ficar extremamente próxima a ele para examiná-lo”, diz à BBC News Brasil.

“O paciente tossia muito e tinha os sintomas da covid-19. Ele estava com a garganta com muita secreção”, diz. “Uma coisa que me deixou muito preocupada foi o fato de que caiu uma gotícula da tosse dele em meu rosto, mesmo com a máscara, durante o atendimento”, revela.

Uma enfermeira do Emílio Ribas, que recebeu instruções para conduzir casos de pandemias como o coronavírus, colheu o material genético do paciente e encaminhou para o Instituto Adolfo Lutz, referência nos testes do vírus. O resultado saiu cinco dias depois: positivo.

Fernanda, que tem 42 anos, viveu um dos momentos mais tensos de sua profissão ao receber o resultado do paciente. Um dia antes, ela havia começado a ter febre e tosse intensa. “Achei que tivesse contraído o vírus ao atendê-lo. Isso me deixou extremamente preocupada, porque eu fiquei pensando nos pacientes em situação vulnerável, com outras enfermidades, que atendi dias depois e poderiam ter contraído o vírus de mim”, relata a médica.

Ela decidiu fazer o exame para descobrir se havia sido infectada pelo coronavírus. Para Fernanda, o seu caso representa o despreparo que pode acontecer em outras unidades de saúde pelo Brasil. “Não é mistério pra ninguém que enfrentamos dificuldades no sistema público de saúde, como falta de material e de insumos. Eu tive que ficar muito próxima ao paciente, enquanto o atendia, pois a sala de isolamento estava com a luz muito fraca e porque o estetoscópio era muito antigo”, declara.

Situações como a vivida por Fernanda trazem à tona a rotina de profissionais de saúde e de trabalhadores responsáveis pela limpeza em hospitais no contexto da pandemia do novo coronavírus.

No Brasil, os registros de pessoas com Sars-cov-2, como é chamado oficialmente o novo coronavírus, têm crescido exponencialmente nos últimos dias. Os dados atualizados apontam que há mais de 100 casos no país.

O Ministério da Saúde afirma que tem orientado os profissionais para atender os casos em todo o país. As ações para isso, segundo a pasta, incluem medidas como o aumento no horário de atendimentos de unidades básicas de saúde, a contratação de 5 mil profissionais por meio do programa Mais Médicos e a intenção de que sejam liberados R$ 5 bilhões de recursos para combater a pandemia — para a aquisição, por exemplo, de materiais e insumos.

Ainda serão direcionados, segundo o Ministério da Saúde, dois mil leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) para pacientes com a covid-19 — cerca de 70% dos brasileiros que não têm plano de saúde dependem do Sistema Único de Saúde (SUS).

De acordo com o Ministério da Saúde, os profissionais de saúde estão preparados para lidar com uma pandemia como o Sars-cov-2. Desde os primeiros casos do novo vírus no mundo, a pasta lançou um protocolo de manejo clínico para médicos e enfermeiros. O documento define que os profissionais devem utilizar Equipamentos de Proteção Individual (EPI), conforme orientado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), para evitar possíveis infecções — os itens devem ser descartáveis e de uso exclusivo.

O protocolo define ainda que os médicos e enfermeiros que cuidarem de pacientes com o coronavírus devem se dedicar exclusivamente a eles e evitar circulação por outras áreas.

Profissionais da área da saúde ouvidos pela BBC News Brasil consideram que a situação da pandemia, ainda que haja protocolos que direcionem como proceder, é completamente estressante e incerta. Eles vivem em meio a diversas dúvidas: se haverá leitos, insumos ou profissionais suficientes para atender às demandas nos hospitais.

Médicos e enfermeiros avaliam que situações como na Itália e na China, onde seus sistemas de saúde foram extremamente sobrecarregados pelo novo coronavírus, são exemplos sobre como proceder no Brasil. Porém, temem que o país passe por situação semelhante, ainda que possa usar as primeiras regiões afetadas como exemplos para aperfeiçoar as ações no combate ao Sars-cov-2.

Na China, onde surgiram os primeiros casos do vírus, um levantamento apontou que cerca de 1,7 mil agentes de saúde foram afetados pela covid-19, em meio a um sistema de saúde sobrecarregado. Um dos principais fatores foi a falta de proteção adequada.

Um caso de profissional de saúde na China que ficou conhecido mundialmente foi o do oftamologista Li Wenliang, de 34 anos. Ele havia alertado sobre o novo coronavírus logo nos primeiros registros, mas foi acusado de divulgar informações falsas. Infectado enquanto atendia pacientes em Wuhan, cidade chinesa epicentro da pandemia, ele morreu no início de fevereiro.

O infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que ainda que os treinamentos de profissionais de saúde estejam acontecendo no Brasil, ninguém está absolutamente preparado para uma pandemia. “Mas em relação ao coronavírus, não é necessário um treinamento especial, porque a doença não é diferente das gripes que já conhecemos”, diz.

“Neste momento, é fundamental aumentar recursos humanos e estruturais para enfrentar a situação”, acrescenta Boulos.

Presidente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), Manoel Carlos Neri avalia o novo coronavírus como preocupante. “Esperamos uma elevação muito grande dos casos nos próximos dias. Por isso, nossa preocupação é em relação aos profissionais, principalmente aqueles que vão estar na linha de frente no combate à pandemia”, afirma à BBC News Brasil.

O Cofen encaminhou, na última quinta-feira (12), orientação para que todas as unidades estaduais do conselho fiscalizem áreas de saúde regionais para verificar as situações. “É preciso investigar a provisão de EPIs para profissionais, os insumos e a capacitação das equipes. Os profissionais precisam estar preparados para atender toda essa demanda de pacientes que é previsível que vá desde a unidade básica de saúde até as especializadas”, declara Neri. “Deverá ser um impacto muito grande na saúde”, acrescenta.

Profissionais da limpeza devem usar o mesmo EPI que médicos e enfermeiros para que possam acompanhar pacientes com o novo coronavírus.

O clima de estresse e apreensão tem se tornado comum para muitos profissionais de saúde no Brasil, em razão do coronavírus. Eles acreditam que nos próximos dias a rotina será incomum e intensa. “Enquanto a população está tentando fugir do vírus, nós estamos indo ao encontro dele, para ajudar os pacientes”, pontua o médico Jaques Sztajnbok, supervisor da UTI do Emílio Ribas.

Sztajnbok acredita que, com o aumento exponencial dos casos, muitos pacientes com o novo coronavírus em estado grave deverão ser internados para tratamentos intensivos — a maioria das pessoas com a covid-19 desenvolve quadro mais leve e podem fazer isolamento em suas casas.

“O futuro dirá como serão as coisas e não é tão longe assim. A gente espera um tsunami de casos”, afirma.

Até o momento, há apenas um caso de suspeita de coronavírus na UTI do Emílio Ribas. Ainda que não haja uma confirmação, o protocolo adotado é o mesmo para pacientes que foram confirmados com o novo vírus. O homem respira por aparelhos, por meio de ventilação mecânica, e há cuidados para que ele gere menos aerossol — partícula fina liberada, por exemplo, ao falar, espirrar ou tossir.

“Devemos nos preocupar com o aerossol porque é por meio de gotículas que o vírus pode ser transmitido. Existem métodos em que se eu for ventilar paciente na UTI, geram aerossol e o profissional que o acompanha fica exposto a isso”, pontua Sztajnbok.

A recomendação principal é que médicos ou enfermeiros que lidem com pessoas na UTI por coronavírus usem o EPI. “As visitas de profissionais a esses pacientes devem ser feitas apenas quando necessário, porque são itens descartáveis e não haverá insumo suficiente para todas as situações”, explica Sztajnbok.

“Quando o profissional deixa a UTI, tem toda uma técnica para retirar o equipamento com álcool 70, para que ele não se contamine. É tudo extremamente cuidadoso”, diz. A mesma técnica deve ser adotada em UTI de outros hospitais, por médicos ou enfermeiros.

“É preciso cuidado intenso, porque, teoricamente, tudo desse paciente tem potencial de infectar alguém”, afirma Sztajnbok.

Ele pontua que o maior temor é que haja uma saturação completa do sistema de saúde. “Não temos capacidade de prever, mas quando olhamos o passado recente na Itália, gera uma grande apreensão. Temos medo que aconteça uma situação caótica como aquela por aqui. Mas é importante levarmos em consideração que a Itália está no meio do inverno, enquanto por aqui ainda estamos saindo do verão”, afirma. Para o médico, assim como para outros especialistas, o clima tropical pode ser um fator positivo para que o Brasil não enfrente explosão de casos como a Itália e a China. “Mas ainda é tudo muito incerto”, ressalta.

Mesmo com o aumento de casos, Sztajnbok acredita que é pouco provável que profissionais brasileiros sejam contaminados em serviço. “Na China houve grande contaminação de enfermeiros porque foi descoberto, posteriormente, que há possibilidade de contaminação do coronavírus por secreções como urina, fezes ou saliva. Esses elementos eram retirados eventualmente pelos enfermeiros sem a proteção adequada, então por isso houve muita contaminação”, pontua.

Segundo ele, tais erros servem como fonte para que profissionais da saúde no Brasil não passem pela mesma situação. Ao menos por enquanto, não há registros de trabalhadores contaminados ao atender ou acompanhar pacientes com o novo coronavírus.

“A questão da enfermagem é muito preocupante, a exemplo de outros países, como na China. É o profissional de enfermagem que fica ao lado do paciente praticamente 24 horas por dia. Por isso, não é impossível que alguns profissionais sejam infectados em alguma situação, por estarem tanto tempo ao lado do paciente”, diz o presidente do Cofen.

“O Governo vai contratar médicos, mas há uma falta muito grande de profissionais de enfermagem nas equipes. Deveria haver também uma preocupação em reforçar as equipes de enfermagem, como medida de combater o coronavírus. Já temos um número de profissionais abaixo do adequado para atender a população. Agora essa situação deve ficar ainda mais evidente”, afirma Neri.

Uma das preocupações em relação aos profissionais de saúde e de limpeza em hospitais é que alguns deles já passaram dos 60 anos. Em razão disso, fazem parte do grupo de risco para complicações relacionadas ao coronavírus — que também inclui diabéticos, pessoas com doenças crônicas, em tratamento de saúde ou com baixa imunidade.

Um importante hospital particular de São Paulo, que atendeu casos de pacientes com o novo vírus, optou por poupar profissionais de atendimentos a pacientes com coronavírus. “Decidimos que esses profissionais idosos da área de saúde ou da limpeza não devem atuar nesses atendimentos”, diz uma funcionária do local — ela, que é enfermeira, pediu que seu nome e o da unidade de saúde não fossem divulgados.

Em outras unidades de saúde, principalmente as públicas, médicos e enfermeiros acima dos 60 atendem pacientes com o novo coronavírus. “Na teoria, profissionais idosos não deveriam acompanhar esses pacientes. Mas isso já foi conversado. Na rede pública de São Paulo, por exemplo, temos mais de 20% dos médicos acima dos 60 anos. Não seria possível lidar com o cenário do coronavírus sem esses profissionais”, diz Marcos Boulos.

Segundo Boulos, enquanto profissionais mais jovens devem usar máscara somente para atender pacientes com o novo coronavírus, os trabalhadores com mais de 60 anos devem recorrer ao item de proteção para todos os atendimentos. “No caso desses médicos e enfermeiros com mais de 60, é ainda mais fundamental o uso de equipamentos de proteção individual”, declara.

Em relação aos profissionais acima dos 60 na enfermagem, o presidente do Cofen ressalta que também há cuidados especiais. “Os profissionais dessa idade compõem um pequeno grupo. A nossa orientação, neste momento, é que eles tomem cuidados específicos, como o uso de máscaras, independente de ser um paciente com o teste positivo para o coronavírus ou não”, declara Neri.

Não há nenhuma orientação do Ministério da Saúde sobre o modo como os profissionais de saúde acima dos 60 anos devem agir em relação aos casos de coronavírus.

Enquanto aguardava o resultado do exame para o novo coronavírus, a infectologista Fernanda teve de ficar isolada em casa. “Fiquei sozinha com o meu cachorro”, diz. Ela passou, aproximadamente, 28 horas à espera do resultado do teste. “Normalmente, o exame dura cinco dias para ficar pronto. Mas como o meu caso era específico, por eu ser médica e ter feito muitos atendimentos depois de uma possível contaminação, ficou pronto em pouco mais de um dia”, revela.

O resultado negativo representou um alívio para a infectologista. “Foi uma alegria. Tirei um peso absurdo das costas. Eu sou uma pessoa saudável, me alimento corretamente e faço exercícios, então não tinha medo do vírus. Mas minha maior preocupação era poder ter infectado meus pacientes, pois muitos fazem parte do grupo de risco”, diz.

Depois do resultado, Fernanda conversou com seus supervisores no Emílio Ribas. “Discutimos sobre como podemos melhorar a infraestrutura física do local, como em relação a equipamentos e iluminação da sala de isolamento. Acreditamos que foi uma experiência ruim, mas que serviu de aprendizado”, diz. Ela espera que a situação melhore nos próximos dias.

A reportagem tentou contato com representantes do Emílio Ribas. Porém, a assessoria de imprensa da unidade de saúde disse que não havia nenhum representante com disponibilidade para responder aos questionamentos sobre a estrutura do lugar.

BBC News