Justiça discute destino da fortuna de Maluf

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Foto: Dida Sampaio / Estadão Conteúdo

Condenado por lavagem de dinheiro e preso em regime domiciliar, o ex-prefeito de São Paulo e ex-deputado federal Paulo Maluf viu, ao longo dos últimos 20 anos, promotores do Brasil, Europa e Estados Unidos rastrearem recursos que saíram de desvios de obras em São Paulo, percorreram paraísos fiscais e foram parar em ações da empresa de sua família, a Eucatex. No processo para recuperação dessa verba e enquanto combate um câncer, ele vê o risco de seus herdeiros ficarem sem a companhia.

Paulo Maluf, proprietário da Eucatex, fabricante de pisos, tintas e laminados, foi indicado prefeito de São Paulo e governador do Estado durante o regime militar. Seu nome se associou a grandes obras públicas, como o Minhocão (via elevada sobre a Avenida São João, no centro de São Paulo), a Marginal do Pinheiros, a Rodovia Ayrton Senna (inaugurada Rodovia Trabalhadores) e o Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos.

Em 1992, Maluf venceu eleições para prefeito da capital, e tocou mais obras. Duas ficaram marcadas por denúncias de superfaturamento: a Avenida das Águas Espraiadas, hoje Jornalista Roberto Marinho, e o Túnel Ayrton Senna, que passa sob o Parque do Ibirapuera.

Em 2009, uma ação civil proposta contra Maluf e seus familiares apontou que o então deputado federal desviou, entre 1993 e 1998, US$ 160 milhões dos cofres da Prefeitura apenas com essas duas obras.

Maluf foi alvo de inquéritos que apuraram improbidade administrativa a partir do ano 2000. As primeiras provas trazidas a público sobre a existência de contas no exterior surgiram em 2001, quando as autoridades de Jersey, uma ilha tida como paraíso fiscal no Canal da Mancha, notificaram o Brasil sobre o bloqueio de US$ 230 milhões de contas que, para eles, pertenciam ao ex-prefeito e seus familiares e tinham movimentações atípicas.

Ao longo dos anos, com a colaboração de promotores de Jersey e do estado de Nova York, nos Estados Unidos, o MP passou a afirmar que a família Maluf usou contas nos bancos UBS (suíço), Deutsche (alemão), Citi (americano) e Safra National Bank (americano), para movimentações internacionais. Eram contas em nome de empresas de fachada.

Uma dessas contas, de nome Chanini, fez investimentos na compra de ouro e em ações de empresas internacionais, e transferências para o Deutsche Bank de Jersey. De lá, para as contas das outras empresas de fachada do ex-prefeito. O dinheiro da Chanini foi enviado à conta por meio de um doleiro, que recebeu os recursos no Brasil e fez os depósitos nos EUA.

A longa cooperação entre investigadores norte-americanos, brasileiros e de Jersey mapeou um total de transações de US$ 344 milhões, atribuídos ao ex-prefeito.

Além das ações civis abertas pelo MP paulista contra o ex-prefeito, Maluf também foi alvo de ações penais, por corrupção e lavagem de dinheiro, tocadas pelo Ministério Público Federal.

Em 2004, uma decisão da Justiça paulista confirmada pelas instâncias superiores até o Supremo Tribunal Federal (STF) bloqueou os bens da família no Brasil. Em 2017, ele foi condenado a sete anos de prisão por lavagem de dinheiro. No ano passado, obteve o direito de ficar em prisão domiciliar

Em Jersey, os US$ 230 milhões atribuídos a Maluf estavam em contas no nome de duas empresas de fachada, Durant e Kildare. Eram empresas abertas com sede em outro país, as Ilhas Virgens Britânicas. Posteriormente, os investigadores descobriram outra empresa, a Macdoel.

A Kildare aplicou cerca de US$ 92 milhões em seis fundos de investimento: Brazil Fund, Fundland Investments, The Oryx Fund, Mercosurian Challenge Fund, Latininvest Fund e Latin American Infrastructure Fund. Ao todo, esses fundos compraram 44,5% das ações ordinárias (com direito a voto) da Eucatex e 50 % das ações preferenciais da empresa.

Para o Ministério Público, essa foi uma das formas usadas por Maluf para injetar em sua empresa os recursos desviados dos cofres públicos. Após o congelamento dos recursos dessas empresas em Jersey, a Prefeitura e o MP passaram a reivindicar em Jersey a devolução do dinheiro desviado.

Diante das apurações sobre a origem ilícita dos recursos naquelas contas, a Prefeitura de São Paulo e o Ministério Público entraram com ação em Jersey pedindo a devolução do dinheiro. A ação seguiu até 2013, quando transitou em julgado (houve decisão final em favor da Prefeitura). A partir daí, os recursos da Kildare e da Durant deveriam ser devolvidos à cidade.

Em 2013, transitou em julgado a ação movida pela Prefeitura e pelo Ministério Público de São Paulo que determinava que os recursos das Kildare e da Durant fossem devolvidos para a Prefeitura.

A questão que foi posta é que essas empresas tinham cerca de US$ 35 milhões em dinheiro depositado nas contas. O restante estava em ações. As quantias em espécie foram transferidas em três remessas, até 2015.

No ano passado, com a descoberta da empresa Macdoel, ligada às demais empresas, a ilha determinou o retorno de mais US$ 12,4 milhões, que também estavam em dinheiro. Desse total, a Prefeitura conseguiu recuperar US$ 8,4 milhões, mas US$ 4 milhões foram transferidos para os administradores das contas determinados pela Justiça de Jersey, para as custas dos processos. O recurso, R$ 35 milhões, foi depositado nas contas da Prefeitura em fevereiro.

Paralelamente à tentativa de recuperar a fortuna desviada por Maluf, o MP paulista buscou acordos com os bancos internacionais que atuam no Brasil e foram usados como ferramenta para o escoamento do dinheiro no exterior. Foi uma forma de os bancos indenizarem os cofres públicos.

O primeiro acordo foi com o Deutsche Bank, que concordou com a devolução de US$ 20 milhões, em 2014. Em 2016, o Citi pagou US$ 15 milhões e o UBS, US$ 10 milhões. Por fim, em 2017, o Safra National Bank de Nova York também concordou com o pagamento de US$ 10 milhões. Ao assinar os termos, os bancos obtiveram o benefício de evitar processos judiciais por atos ligados aos desvios do ex-prefeito ‒ as instituições negam participação nesses atos.

Como São Paulo tinha recursos a receber das empresas, e não conseguia viabilizar uma forma de recebê-los, Prefeitura e MP decidiram então procurar a Justiça das Ilhas Virgens, país onde Kildare e Durant foram registradas. Lá, fizeram a cobrança de recursos, que não foi paga. Por isso, as autoridades daquele país decretaram a falência das companhias e um administrador foi nomeado para cuidar da massa falida.

Uma das medidas a serem adotadas pelos gestores da massa falida é o leilão das ações da Eucatex. Dessa forma, 44,5% das ações com poder de voto sobre os rumos da empresa deverão ser oferecidas ao mercado, deixando as mãos dos Maluf.

Entre setembro e dezembro do ano passado, a Prefeitura se inscreveu como credora dessa massa falida. Assim, quando os leilões forem finalizados, os recursos arrecadados deverão complementar o ressarcimento à cidade.

A ação civil por improbidade que ainda tramita contra Maluf cobra dele uma multa de R$ 1,7 bilhão por causa dos desvios cometidos ainda na Prefeitura.

O Ministério Público de São Paulo, o Ministério Público Federal e a Promotoria de Jersey firmaram um acordo para que um dos agentes financeiros que facilitaram as ações de lavagem de dinheiro dos Maluf, o jordaniano Hani Bin Kalouti, tivesse uma denúncia oferecida em um terceiro local, a ilha de Guernsey, vizinha à Jersey.

Ele não pôde ser processado no Brasil nem em Jersey porque suas ações não ocorreram no solo desses locais. É a primeira vez que o MP de São Paulo se vale de uma Transferência Internacional de Processo, um instrumento previsto na Convenção da ONU Contra o Crime Organizado.

Maluf por anos negou que tivesse contas no exterior. Viraram bordão as frases em que dizia que, caso alguém achasse contas dele no exterior, poderia ficar com o dinheiro. Sua defesa não quis comentar o leilão. Por meio de nota, a Eucatex afirmou que “os fundos mencionados são acionistas da empresa, mas não compõem o bloco de controle”. A direção da Eucatex informou que preza pela boa gestão da empresa independentemente do controle acionário.

Estadão