Protagonismo de médico faz Trump perder a paciência

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Foto: JONATHAN ERNST / REUTERS

No dia 2 de março, o presidente Donald Trump disse que a vacina contra o novo coronavírus estará disponível “muito brevemente” – “entre três e quatro meses”, talvez “um ano” – e que as pesquisas caminham “muito rapidamente”. Logo em seguida, o médico Anthony Fauci declarou que será necessário esperar, na melhor das hipóteses, entre um ano e um ano e meio.

No dia 15, Trump pediu calma à imprensa e aos cidadãos: “relaxem, nós estamos indo bem”. Com toda a calma do mundo, Fauci disse: “o pior ainda está por vir”. Esses são apenas alguns exemplos das discordâncias entre o presidente dos Estados Unidos e o famoso epidemiólogo Anthony Fauci, a maior autoridade em doenças infecciosas do país. Além de eminência mundial no combate à AIDS, o médico vem se mostrando também um especialista em corrigir o presidente.

Suas aparições conjuntas na grandes entrevistas coletivas do grupo de trabalho criado para a crise são uma exibição de dois personagens antagônicos – Trump, apesar disso, parecia gostar. Há algumas semanas, disse exaltante que o médico “havia se transformado em uma estrela de televisão”. Agora, ele está há alguns dias sem aparecer. É o estranho caso do doutor Fauci, como é conhecido pelo mundo, e de Trump.

– Eu não discordo na essência – disse o médico, em uma entrevista à revista Science, sobre suas discordâncias com o presidente. – São usadas, no entanto, umas expressões que eu não adotaria porque podem causar alguns mal entendidos sobre os fatos.

Foi no dia 19 de março que o presidente assegurou que um tratamento à base de cloroquina, comumente usado para a malária, está funcionando contra a Covid-19. No dia seguinte, quando perguntado sobre o assunto, Fauci chamou as evidências de “anedóticas”. Trump, por sua vez, afirmou ser um “grande fã” do médico e afirmou estar de acordo que o tratamento “pode funcionar ou não”.

– O que dizemos não é tão distinto. O presidente segue otimista, esse é seu sentimento – afirmou o médico, concluindo a troca.

A primeira coisa que choca nas entrevistas do grupo de trabalho é como descumprem sistematicamente as recomendações oficiais do governo de evitar reuniões com mais de 10 pessoas e de manter distância entre as pessoas. Cerca de uma dezena de integrantes da força-tarefa estão diariamente no palco. Nos assentos da sala, há geralmente o mesmo número – ou até mais – jornalistas.

– A situação no palco é um pouco mais problemática. Eu sigo dizendo “há como nós realizarmos uma entrevista coletiva virtual?” – disse o médico à Science. – Mas quando você está lidando com a Casa Branca, às vezes é necessário dizer as coisas uma, duas, três, quatro vezes, até elas acontecerem. Então eu vou continuar a pressionar.

Anthony Stephen Fauci sabe bem como tratar os presidentes. Diretor do Instituto de Alergia e Doenças Infecciosas desde 1984, já trabalhou com seis governos diferentes. Ele liderou a estratégia do governo frente à epidemia de Aids que estava se instalando e se transformou em uma autoridade mundial. Seu pai, um imigrante italiano que morava no Brooklyn, era farmacêutico e tocava seu boticário – isso fez com que Fauci saiba se mover em um laboratório com a mesma facilidade que transita em Washington.

Um dos episódios habitualmente lembrados de seus primeiros passos na vida pública data de 1988, quando um grupo de ativistas protestava em frente ao instituto que comanda para demandar testes com medicamentos experimentais. Fauci os surpreendeu ao convidá-los para seu laboratório e abrir um canal de comunicação. Posteriormente, o epidemiologista lidou com epidemias de ebola e zika mas, aos 79 anos, um novo vírus pôs o mundo de ponta-cabeça, trazendo-o novamente para os holofotes.

A popularidade e a influência de Fauci ficaram claras na entrevista coletiva desta segunda-feira, da qual o cientista estava ausente. Trump explicava que o governo estuda suavizar em alguns dias as medidas de restrição – o fechamento de negócios, milhões de trabalhadores em casa, etc – em razão dos estragos que causam à economia. Um jornalista perguntou se o médico estava de acordo com a reabertura, algo que levou o presidente a responder:

– Não está em desacordo.

Fauci não vê problemas de esclarecer ou corrigir Trump quando cogita ser necessário, mas também sabe escutar passivamente tudo que o presidente tem a dizer sobre o cenário. Na semana passada, no entanto, foi traído por seu subconsciente. Quando o líder americano se referiu ao Departamento de Estado como o “Departamento de Estado profundo”, Fauci levou as mãos ao rosto, imagem que viralizou nas redes sociais.

As entrevistas coletivas vêm se prolongando por tanto tempo – a de segunda-feira chegou a durar quase duas horas – que Trump acaba opinando em quase todos os aspectos científicos, sempre como uma ampla margem de erro, dado ao seu pouco conhecimento sobre o assunto. Em sua entrevista para a Science, Fauci foi questionado pelo jornalista Jon Cohen sobre os deslizes do presidente:

– Ele tem o seu estilo, mas me escuta no que é importante – afirmou, antes de dizer. – Não posso pô-lo diante de um microfone e depois tirá-lo.

O Globo