Ataque de Bolsonaro a Mandetta cria insegurança no governo
Foto: Isac Nóbrega/PR
Foi há apenas 30 dias, embora o intenso noticiário já tenha feito março parecer um mês distante no calendário. Era uma época em que a postura do presidente Jair Bolsonaro frente o avanço do coronavírus era considerada, no Ministério da Saúde, “genial” e equilibrada. Ele dava liberdade de ação à área técnica, enquanto cobrava do ministro Luiz Henrique Mandetta um discurso público transparente e capaz de tranquilizar a população. Na Pasta e em outras áreas do governo, acreditava-se que um instinto político aguçado faria com que o presidente conduzisse a nação com prudência durante a grave crise que se aproximava. A expectativa foi brutalmente atropelada pelos fatos.
A intempestiva mudança do comportamento presidencial não abalou apenas a relação de confiança entre o chefe do governo e seu subordinado direto responsável pela Saúde. Espalhou uma sensação de insegurança pela Esplanada dos Ministérios, num momento em que a máquina administrativa precisa se sentir respaldada na missão de tentar construir medidas para combater os efeitos da crise.
Caso Mandetta cria insegurança em mais áreas do governo
Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta se conheceram no Congresso. Encontravam-se com frequência no corredor que dava acesso aos seus gabinetes, ambos localizados no terceiro anexo da Câmara.
A aproximação foi natural. Hoje ministro da Saúde, o deputado sul-mato-grossense se candidatara pelo DEM para fazer oposição ao PT. Lá encontrou um parlamentar já conhecido por seu antagonismo aos partidos de esquerda.
Bolsonaro estava filiado ao PP, partido da base governista, e por isso muitas vezes contava com a ajuda dos amigos para ter acesso a pareceres técnicos da oposição durante as atividades legislativas. Os dois costumavam trocar ideias sobre os projetos em pauta e temas da área de saúde. Quando decidiu tentar trocar o Anexo 3 da Câmara pelo terceiro andar do Palácio do Planalto, Bolsonaro começou a estruturar sua campanha e pediu ao colega contribuições para um programa de governo.
Quem acompanhou essa trajetória não se surpreendeu com a nomeação de Mandetta para o Ministério da Saúde, mesmo que os dois já tivessem discordado em um outro episódio que contrapôs a ciência e o voluntarismo. Bolsonaro foi, quando ambos eram contemporâneos na Câmara, um aplicado defensor da substância que ficou conhecida como “pílula do câncer”.
Agora não foi diferente. Em vez de continuar compatibilizando as exigências técnicas às necessidades políticas naturais de um chefe de governo, criando assim um discurso único do Executivo, o presidente da República preferiu adotar uma postura ambígua.
Para um eleitorado ainda fiel, insiste em relativizar o perigo representado pelo novo coronavírus e a gravidade de uma pandemia que já matou milhares de pessoas no mundo. Chegou a ir além e fez troça de uma enfermidade que acometeu integrantes do seu próprio estafe.
Ao Congresso, por outro lado, pediu que fosse prontamente reconhecida a situação de calamidade, para ter maior liberdade no manejo do Orçamento e garantias jurídicas para abandonar as metas fiscais. Ao publicar medidas emergenciais no “Diário Oficial da União”, não deixou de destacar a gravidade de uma situação que em outros momentos ridiculariza sem pudor.
Tal postura tem gerado uma indagação entre autoridades que também precisam subscrever pareceres, atos e minutas. “Qual chefe de governo está à frente do Ministério?”, questionam-se. “Aquele que não se importa em abandonar pelo caminho auxiliares? Ou um líder que, depois de escalar emissários da ala política para cobrar rapidez na formulação das medidas econômicas, assumirá a responsabilidade das decisões tomadas sem terceirizar culpas?”
A reflexão ganhou peso depois que assessores próximos do presidente argumentaram que, a despeito das preocupações de integrantes da equipe econômica, não havia necessidade de se mudar a Constituição para garantir a segurança jurídica na tomada de medidas de socorro à população mais vulnerável. O que se precisava era de mais rapidez, cobravam.
Alguns técnicos não só temem enfrentar processos individuais pelo que assinam como também recordam muito bem qual o risco político que um presidente assume ao pressionar a área técnica em nome de um projeto de poder. Se o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, reconheceu em público que gostaria de ter mais segurança jurídica para avançar com o programa emergencial e até mencionou ter receio de um impeachment, é compreensível que os servidores estejam também preocupados com seus CPFs e suas reputações.
Assim como em 30 dias Bolsonaro mudou totalmente seu discurso sobre o Ministério da Saúde, a dúvida que surge é se o mesmo não pode ocorrer em relação ao desempenho de outras áreas da Esplanada.
Já ficou no passado o Bolsonaro que repetia à exaustão, durante a campanha eleitoral ou o início do governo, não dominar o significado de termos como Produto Interno Bruto (PIB), câmbio e juros. Aquele remetia todas as indagações ao seu ministro da Economia, então portador de uma “carta branca”. Agora, no entanto, o presidente diariamente discorre sobre os desafios colocados à economia pela nova conjuntura. Nada impede que comece também a responsabilizar em público sua equipe por uma desaceleração que tem razões muito mais profundas e complexas.
O slogan criado pelo governo federal para tentar confortar a população durante a pandemia garante que “ninguém ficará para trás” nesta crise. Como comprova a fissura na relação do presidente com o ministro da Saúde, improvável que esse slogan se sustente por muito tempo como algo verdadeiro. Bolsonaro já demonstrou diversas vezes que essas palavras não valem para os auxiliares que criam, na sua visão, dificuldades ao seu projeto particular de poder.