Bolsonaro inventa manifestação com 100% de “infiltrados”
Foto: Adriano Machado
Após comparecer e discursar em um ato, no domingo, que tinha como mote principal a intervenção militar — e ser duramente criticado por parlamentares, ministros e governadores —, o presidente Jair Bolsonaro decidiu adotar um tom mais conciliador. Ontem, negou que tenha qualquer intenção antidemocrática e disse apenas expressar sua opinião ao tecer críticas à atuação de outros poderes. Ele afirmou, ainda, que os pedidos ilegais e que atentam contra a democracia foram feitos por “infiltrados” e não por ele. Na manifestação, houve defesa da reedição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que inaugurou a fase mais repressiva da ditadura militar (1964-1985), e do fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Bolsonaro, no entanto, afirmou ser ele próprio a Constituição, ao ser questionado sobre a presença na manifestação. “O que eu tomei de providência contra a imprensa, contra a liberdade de expressão? Eu, inclusive, sou contra as prisões administrativas que estão ocorrendo no Brasil. Prenderam uma mulher de biquíni na praia no Recreio (Rio de Janeiro), prenderam na praia de Boa Viagem (Recife) um aposentado da Aeronáutica. Eu sou, realmente, a Constituição”, frisou.
Segundo Bolsonaro, geralmente quem faz algum tipo de conspiração visa chegar ao poder, o que não se aplica ao caso dele. “Eu já estou no poder. Já sou o presidente da República. Então, estou conspirando contra quem, meu Deus do céu? Falta um pouco de inteligência daqueles que me acusam de ser ditatorial”, alfinetou.
O chefe do Executivo reafirmou respeitar os demais poderes, mas argumentou que também tem opinião. “Não vou pecar por omissão. Respeito o STF, o Congresso, mas eu tenho opinião. Não pode qualquer palavra minha ser interpretada por alguns como agressão, como ofensa”, reclamou.
Perguntado sobre qual mensagem daria aos apoiadores que clamam pela volta do AI-5, Bolsonaro rebateu: “Não quero papo com vocês. Quem não quiser ouvir, vá embora. Todo e qualquer movimento tem infiltrado, tem gente que tem a sua liberdade de expressão. Respeite a liberdade de expressão”, disse. “Pegue o meu discurso, deve dar dois minutos. Não falei nada contra qualquer outro poder. Muito pelo contrário. O povo quer voltar ao trabalho. O povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso. Mais nada. Fora isso, é invencionice, é tentativa de incendiar uma nação que ainda está dentro da normalidade. No que depender do presidente Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo.”
Por mais que Bolsonaro tenha justificado as manifestações de domingo como liberdade de expressão, acabou incitando um movimento que pedia o fechamento do Congresso Nacional e do STF, além da instauração de um novo AI-5 e uma intervenção militar no país.
Na visão de especialistas, o episódio do fim de semana se junta a uma série de outras ocasiões em que o presidente ultrapassou os limites do poder que exerce. “Reiteradamente, Bolsonaro pratica atos graves de afronta ao Supremo, ao Congresso e a parlamentares específicos. Todas essas situações são absolutamente incompatíveis com aquilo que se espera do presidente da República”, comentou Conrado Gontijo, doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP).
Para o professor, juridicamente, Bolsonaro já deveria responder a um processo de impeachment, porque estaria se portando de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Contudo, é difícil imaginar que o Congresso analise algum pedido de afastamento do presidente neste momento de pandemia. “Não há ambiente político para que avance um processo de impeachment. As variáveis para que isso se viabilize são muitas. As jurídicas já estão dadas. Mas o encaminhamento depende de outros fatores”, analisou.
Doutor em direito constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Alexandre Bernardino acrescentou que, no meio de uma crise mundial de saúde tão grave, Bolsonaro desafia a ciência e a democracia de forma desnecessária. Segundo o especialista, o presidente não pode se colocar acima da Constituição. “A Presidência da República, e muito menos a pessoa do presidente, não são a Constituição. A Constituição é um conjunto de instituições. O povo quem a fez e concordou em se submeter a ela. As pessoas estão sempre abaixo da Constituição, independentemente de quem seja”, frisou.
Bernardino ainda destacou que “o fato de Bolsonaro dizer que foi eleito e que já está na presidência não o exime da possibilidade de querer um golpe de Estado, porque a ameaça de um golpe já existe permanentemente”. “Os filhos dele sempre falaram disso, bem como os seguidores dele que o cercam. Estamos vivendo um processo muito ambíguo, de muita instabilidade institucional e democrática”, alertou.
Ao responder a um dos apoiadores na saída do Palácio da Alvorada, que pedia o fechamento do STF, Bolsonaro recriminou o comentário. “Esquece essa conversa de fechar. Aqui não tem que fechar nada. Aqui é democracia. Aqui é respeito à Constituição brasileira. Aqui é a minha casa, é a tua casa. Eu peço, por favor, que não se fale isso aqui. Supremo aberto, transparente. Congresso aberto, transparente”, afirmou.
O presidente Jair Bolsonaro disse esperar que o isolamento horizontal termine ainda nesta semana. “Meu papel é preservar a liberdade do brasileiro, se nós tivermos um quadro de caos, não sabemos o que vai acontecer. O povo com fome, com dificuldade, com filho doente em casa, a gente não sabe o que vai acontecer. Ou melhor, até sabe, mas não quero levar a um clima de incerteza”, afirmou. “Dá para recuperar o Brasil ainda. Eu espero que esta seja a última semana desta quarentena, desta maneira de combater o vírus com todo mundo em casa.” De acordo com Bolsonaro, 70% da população será infectada. “As medidas restritivas de alguns estados foram excessivas, não atingiram seu objetivo. Aproximadamente 70% da população será infectada. Não adianta querer correr disso”, sentenciou. Horas depois, ao ser questionado sobre o número de mortes pelo novo coronavírus — quase 2.600 no país —, Bolsonaro foi ríspido. “Eu não sou coveiro, tá certo?”. O jornalista insistiu na pergunta, e recebeu a mesma resposta.