Colunista de gastronomia atendeu ao rei do gado
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São 16h41 de sábado, 4 de abril. Há exatos 19 minutos, aceitei a missão de encarar, profissionalmente, o jejum convocado pelo presidente Jair Bolsonaro.
Um minuto antes, a Folha me escrevera para pedir a pauta. Estava no caixa do supermercado. Pensei: “Dançou o churrasco solitário dominical de quarentena.” Quase voltei e comprei um pote de doce de leite para afogar as mágoas.
São 16h46, e já estou arrependido. Não pelo jejum em si —tenho reservas energéticas para queimar—, mas por atender a um chamado do berrante do Rei do Gado. Pelo menos não me mandaram rezar. Sou ateu e, se cristão fosse, tampouco rezaria por aquele indivíduo.
Tudo bem, vai passar. Eu só preciso me controlar para não contar cada minuto do relógio. Isso enlouquece. São 17h10.
São 21h47. Estou morto de fome, mas vou retardar ao máximo o jantar de sábado. O cardápio é burrito, em homenagem ao patrono do jejum.
São 23h55. Terminei de jantar. Vou dormir com a barriga cheia de feijão, grande ideia.
São 13h38 de domingo, 5 de abril. Maravilha, só acordei agora. O truque do remedinho funcionou novamente. Mesmo assim, tenho um longo e tedioso dia pela frente. Também tenho fome.
São 13h52. Ligo o computador. Eita! Acho que acordei atrasado. Vejo que os pastores recomendaram jejum da meia-noite de sábado ao meio dia de domingo. Em Brasília, as cheerleaders de Cristo –uma claque que veio de Ceilândia– já forraram a pança.
Mas que diabo de jejum é esse, que termina antes do almoço? Parece jejum de laboratório. Como não vou fazer exame de sangue, sigo no propósito de fazer um jejum sério, de 24 horas.
São 14h44. Ok, mas como seria um jejum sério? Em alguns sites católicos, descubro que o ideal é apenas beber água, mas… E aí segue um rol de exceções e relaxamentos da penitência. Dá para fazer jejum de pão e água, dieta líquida, pular uma refeição ou até mesmo comer e se sentir culpado por isso. Escolho a dieta líquida.
Pego as duas mexericas que tenho em casa e as transformo em suco de tangerina. Por que a mexerica muda de nome quando vira suco?
São 15h15. Tédio. Gatos de rua fazem um barulhão com sexo ou briga, não sei bem dizer. Todos os cachorros do bairro latem de volta.
São 16h01. Acompanho a hashtag #jejumpelobrasil no Twitter. Gente, esse povo é ainda mais doido do que eu imaginava. Eles fazem genuflexão na calçada cheia de cocô de cachorro, piolho de pombo e escarro de corona. Foooome.
Na internet, me deparo com uma história assaz interessante. No século 17, monges da ordem dos mínimos passavam a quaresma toda só na base da cerveja. Instalados na Baviera, sul da Alemanha, os religiosos inventaram um estilo de cerveja –hoje conhecido por doppelbock– forte o bastante para os sustentar nos 40 dias entre o Carnaval e a Páscoa.
São 7,9% de álcool. Não é de se admirar que os frades tivessem visões místicas de vez em quando.
São 17h20. Abro minha primeira cerveja. Boa ideia? Obviamente não é. Mas convenhamos que as boas ideias andam escassas. Perto de combater demônios, coronavírus e o comunismo com jejum, beber de barriga vazia até parece algo sensato.
São 18h18. Caceta, eu tinha certeza de que havia sobrado amendoim em algum lugar desta casa.
São 18h45. Um filminho, talvez, para distrair? Tem um que parece bom aqui na Netflix, “O Poço”. Sinopse: numa prisão vertical, a comida desce por uma corda: os que estão nos andares mais altos comem; os outros, só quando sobra. Vou passar.
São 19h18. Aquela zapeada básica no Instagram. Diacho, só tem foto de comida. Para piorar, tem alguém que aparentemente cozinha muito bem no meu prédio. O cheiro, hoje, é de carne assada. Vapapu.
São 20h31. Não tenho forças para bater panelas. Resolvi comprar on-line um ovo de Páscoa para o meu filho. Quase lambi a tela do computador. Vou cozinhar para que o jantar esteja pronto à meia-noite. Macarrão é o que tem para comer.
São 20h45. A hashtag #jejumpelobrasil não está mais no top 20 do Twitter. Imagino que os devotos já tenham cedido ao bolo com chá.
São 21h12. O álcool varreu o tédio e bateu com força inédita. Se pudesse sair de casa, procuraria um pé de goiaba.
São 22h25. Nota mental: não posso dormir antes de comer.
São 22h34. O “Fantástico” termina com o Gilberto Gil e a neta cantando “Volare”. Tenho um surto de choro. Já passa.
São 23h10. Daqui a pouco a tortura acaba. Vou beber água e, ao abrir a geladeira, faço contato visual com um vidro de azeitonas. Vade retro, esconjura, mangalô, pé de pato, três vezes.
É meia-noite de segunda-feira, 6 de abril. Com licença, vou jantar. Corona acabou? Não. Duvido que o comunismo tenha sido fulminado. Só mais tarde saberei se os meus demônios de estimação foram expulsos pelo jejum. Mas já sei que não.