França exige solidariedade da Europa com África
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Em entrevista exclusiva concedida à RFI na terça-feira (14), no Palácio do Eliseu, o presidente francês, Emmanuel Macron, explicou sua estratégia para ajudar a África a enfrentar a pandemia de coronavírus. No curto prazo, Macron espera que os ministros das Finanças do G20 aprovem, na reunião virtual que farão nesta quarta-feira (15), uma moratória da dívida contraída pelos países africanos. A longo prazo, o presidente francês defende o cancelamento das dívidas dos países do sul.
Christophe Boisbouvier, da RFI
Pela primeira vez, o chefe de Estado francês falou sobre o controverso trabalho do professor de Microbiologia Didier Raoult, que ele visitou em 9 de abril, em Marselha.
RFI – Em seu pronunciamento aos franceses, na última segunda-feira, o senhor também defendeu um cancelamento maciço da dívida contraída pelos países do sul. Isso significa que sua preocupação não é apenas com a França, mas também com a África?
Emmanuel Macron – Sim, muito profundamente. Porque acredito que o período no qual estamos entrando, e vivenciando coletivamente, afeta todos os continentes. Vemos a extrema dificuldade de enfrentar esse vírus e fornecer respostas nos países mais desenvolvidos, nos sistemas de saúde mais robustos: Estados Unidos, Europa, China. Quando olhamos para a situação da África hoje, nos planos da saúde, econômico e climático, é óbvio que lhe devemos solidariedade.
RFI – Antes de abordar essa ação coordenada, gostaria de ouvi-lo sobre o risco em si. No mês passado, muitos previram um desastre sanitário na África. Mas esse não é o caso. A África é, até o momento, o continente menos afetado pelo coronavírus, e o professor Raoult, que o senhor visitou há alguns dias em Marselha, afirma: “A África está relativamente protegida graças ao consumo de tratamentos contra a malária”. Ele nasceu em Dakar e repete com frequência a seguinte frase: “Na África, nós crescemos tomando a cloroquina desde crianças”.
EM – Eu não sou médico, não sou especialista em doenças infecciosas como o professor Raoult, por quem tenho muito respeito. Fui visitá-lo para compreender e ter certeza que o que ele propõe está sendo bem avaliado nos ensaios clínicos.
Eu chamo a atenção de nossos ouvintes e internautas: hoje, nós não temos um tratamento reconhecido para o novo coronavírus. Meu papel, ao visitar o professor Raoult, foi o de garantir que ele continue a realizar seu trabalho dentro de um protocolo de pesquisa clínica. Ele é um dos nossos maiores expoentes nessa área. Vi que poderíamos avançar rapidamente ou ao menos observar, por meio de métodos simples, mas rigorosos, se funciona ou não. Em todo o mundo estão sendo lançados ensaios clínicos, e a França é o país europeu que iniciou o maior número de experimentações. A combinação de hidroxicloroquina e azitromicina é uma terapia oferecida pela professor Raoult e deve ser testada. Ele utiliza as duas drogas e tem seu próprio protocolo. Existe um protocolo que foi autorizado pelas autoridades competentes em Montpellier. E temos que seguir em frente, mostrar a eficácia e mensurar a toxicidade.
Eu digo isso porque você tem que ter muito cuidado. O presidente da República francesa não está aqui para dizer “esse tratamento é bom ou não é bom”. Meu dever é que todas as abordagens terapêuticas adotadas hoje possam ser submetidas a rigorosos ensaios clínicos, e rapidamente, para que seja possível encontrar um tratamento.
RFI – Depois de passar três horas com ele, o senhor não saiu completamente convencido.
EM – Não é uma questão de crença! É uma questão científica. Estou convencido de que ele é um grande cientista e considero apaixonante o que ele fala e o que ele explica. De fato, ele nos incita a ser humildes, porque ele mesmo diz que as coisas podem variar de acordo com as estações do ano e as características geográficas, e que um vírus reage de acordo com os ecossistemas. Então, talvez, haja isso na África. Estou apenas dizendo que precisamos garantir que, em todos os lugares, os testes sejam feitos, e devemos permanecer coletivamente muito rigorosos.
Agora, sobre o vírus da Covid-19 e a África, serei muito claro. Eu não sou dos catastrofistas, nem pretendo ser ingênuo. Hoje, esse vírus afeta a todos. Portanto, não acho que se deva dizer que um milagre preservaria a África. De qualquer forma, se isso acontecer, ótimo, e eu desejo profundamente. Mas nosso dever é fazer de tudo para ajudar a África nesse contexto.
A África enfrenta uma situação de vulnerabilidade na área da saúde: existe o HIV (vírus da Aids), a tuberculose, a malária e outras doenças. Por isso, nos mobilizamos em outubro passado, em Paris, para o Fundo Global ajudar particularmente a África a combater essas grandes pandemias. Também é o continente mais afetado pelas mudanças climáticas. Penso na Zâmbia, que acaba de sofrer uma das maiores secas desde 1981, nos ciclones que atingiram Moçambique, na África Oriental, atacada por gafanhotos, nas dificuldades que conhecemos no lago do Tchade e a seca que continua. Então, estamos falando de um continente no qual dezenas de milhões de habitantes experimentam na carne o que é o choque climático.
Estamos falando de um continente que enfrenta grandes dificuldades econômicas. Vejamos os números: em 2012, a dívida da África correspondia a 30% de seu PIB. Hoje, é de 95%. Portanto, as dificuldades que estou descrevendo piorarão mesmo se a Covid-19 não representar um desastre sanitário – e não posso dizer, hoje, se não será. É por esta razão que devemos absolutamente ajudar a África a fortalecer suas capacidades para responder ao impacto na saúde e, a fortiori, devemos ajudá-la a responder economicamente à crise que já existe. Nós devemos estar ao lado do continente africano.
Era isso que eu queria lançar no G20 há algumas semanas. Realizamos uma videoconferência e usei o tempo reservado à França para dizer: “Vamos nos unir, atuar pelos nossos países, o que já é muito difícil. Mas devemos também ajudar a África a sair disso. É um dever moral e humano para nós. Em parceria com os líderes africanos presentes, dias depois elaboramos um plano com quatro eixos de ação. Hoje, temos todos os líderes europeus do G20, além de Espanha, Portugal e alguns outros, conosco nessa proposta.
RFI – O que podemos fazer pelos países, especialmente na África, que não possuem leitos de terapia intensiva? O que a Europa pode fazer? O que a França pode fazer?
EM – Mobilizar financiamento de curto prazo. Temos o Fundo Global e, sobre este aspecto, Peter Sands [diretor-executivo do Fundo Global] e o presidente Kaberuka [ex-presidente do Banco Africano de Desenvolvimento] estão dispostos a continuar financiando equipamentos essenciais para operações de resgate, salvamento e proteção.
RFI – Presidente, mas o Fundo Global foi criado para combater a Aids, a malária, a tuberculose…
EM – Você está certo. Mas não se trata de desviar os US$ 14 bilhões que foram levantados para o combate dessas doenças, e sim destinar algumas centenas de milhões ao coronavírus, apenas para começar. Dessa maneira, o choque poderia ser absorvido e outros governos do G20 poderiam ajudar na capacitação e nas necessidades atuais dos sistemas de saúde. Você falou em carência de leitos e respiradores. Os recursos seriam usados para comprar esses materiais. Estamos no processo de fabricá-los para nossos próprios sistemas, e acredito que possamos produzir em maior quantidade para suprir nossos parceiros africanos. A defasagem em nossos picos epidêmicos, espero, talvez possa nos ajudar. Eu conversei muito com nossos parceiros africanos para que eles decidam pela máxima contenção e atrasem a epidemia. Quanto mais eles atrasarem, mais europeus estarão em posição de ajudá-los, porque não teremos picos epidêmicos ao mesmo tempo. A ideia é poder comprar os equipamentos, proteger, responder e acelerar os testes clínicos de tratamentos e da vacina.
Internacionalmente, temos vários mecanismos, como o Cepi, lançado pela Noruega, financiado por muitos países, que faz pesquisas sobre vacinas nessa área. Existem várias iniciativas em andamento. Temos a Gavi, lançada pela França e pelo Brasil há quase 20 anos, que serve precisamente para disseminar essas inovações e avançar. A Gavi e o Fundo Global devem trabalhar juntos nessa pandemia, principalmente na África. Temos o Unitaid, que é usado para promover o acesso à saúde, equipamentos e muitas outras coisas. Temos o Fundo Global sobre o qual estávamos falando. Devemos alcançar o sucesso esperado com a ajuda da Organização Mundial da Saúde. Também devemos mobilizar as principais fundações – penso, particularmente, na Fundação Gates – e nas ONGs.
RFI – O quarto eixo de sua ação coordenada é o componente econômico e financeiro. Os países africanos precisam reembolsar cerca de 365 bilhões de dólares a seus credores. Como convencer esses credores, públicos, mas também privados, chineses, europeus e americanos, a desistir dessa quantia? É colossal!
EM – Quando analisamos como todas as economias desenvolvidas reagiram à crise, observamos duas coisas: um choque de política monetária e um choque de política fiscal. Os bancos centrais, o Banco da Inglaterra, o FED, o BCE, adotaram uma política monetária maciça em março, sem precedentes em termos de velocidade e magnitude. Na sequência, os governos puderam adotar respostas orçamentárias.
Nesse contexto, não há equivalente monetário no continente africano e é uma punição dupla: não há possibilidade de fazer essa criação de moeda, quando este é o instrumento necessário para as economias. Além disso, estamos testemunhando, nesses países emergentes, uma fuga de capitais que piora suas dificuldades. A resposta, a equivalência nesse caso, é o que o FMI faz por meio da emissão de títulos especiais. O FMI deve poder emitir US$ 500 bilhões, e temos que alocar o máximo possível. Este é o primeiro pilar.
O segundo, no nível orçamentário, passa pela questão da dívida, que você mencionou. Você se lembrou dos números, e eles são cruéis. A cada ano, um terço do que a África exporta comercialmente é usado para pagar sua dívida. Isso é loucura! E nós aumentamos esse problema nos últimos anos. Espero que sejamos capazes de dar a resposta mais forte possível sobre esse assunto, porque não é sustentável. Eu disse aos franceses ontem: sou a favor de uma iniciativa maciça de cancelamento da dívida, essa é a única maneira de chegar lá.
No curto prazo, tivemos uma discussão. Há quatro representantes especiais que foram mandatados pela União Africana, eles fizeram propostas que eu gostaria que fossem aceitas. Essas propostas eram para dizer: “moratória”. Porque conversamos muito, eles trabalharam muito. Eles dizem: “Cancelamento, não chegaremos lá imediatamente. O que significa a moratória? Isso significa que não pagamos mais juros, você nos dá oxigênio. Nós escalonamos essa dívida e talvez possamos fazer com que todos concordem com essa ideia.
Na noite de quarta-feira – e bato na madeira –, o G20 deve adotar esse financiamento no qual investimos todo o nosso capital político. Aprovar essa moratória das dívidas da África. A operação afetaria membros do Clube de Paris, mas também China, Rússia, todas as economias do Golfo e grandes doadores multilaterais. Seria uma iniciativa inédita. Isso significa que, durante a crise, deixaríamos as economias africanas respirarem e não cobraríamos mais os juros da dívida. É uma obrigação, e acho que é um grande passo à frente.
Essa moratória deve preceder outras etapas nas quais temos que trabalhar, que são etapas para reestruturar a dívida africana. Isso deve ser feito sem obviamente penalizar os países africanos mais rigorosos, comprometidos em ter uma política de sustentabilidade. Mas também não podemos dizer: “Este esforço será feito apenas por poucos, e os outros não o farão”. Deve ser o mesmo para todos os principais doadores.
RFI – Os chineses detêm cerca de 40% dos créditos da dívida africana. O senhor conversou com presidente chinês, Xi Jinping, sobre isso? Ele concorda em escalonar essa dívida, ou mesmo cancelá-la, como o senhor defende?
EM – Eu não tive uma discussão com ele sobre este assunto. Mas eu conheço a importância da África para ele. Não tenho dúvida por um segundo que, para o presidente chinês, a situação na África, hoje, justifica um gesto dessa importância. Esta é uma discussão que teremos, no âmbito de um G20, se ele ocorrer nos próximos dias ou nas próximas semanas ou em um nível bilateral, porque vou perguntar a ele sobre esse ponto. Mas acho que esse é um gesto importante que a China deve fazer para apoiar esse esforço conjunto.
RFI – E os credores privados?
EM – Eu disse: todo mundo. Moralmente, humanamente, é nosso dever, em parceria com a África. Então, acho que doadores públicos, privados, bilaterais e multilaterais devem se comprometer com essa lógica. Eu dei um horizonte. Agora, temos que nos sentar à mesa e fazer esse trabalho.
RFI – Presidente, obrigado por ter recebido a Rádio França International.
EM – Obrigada e coragem! Eu quero realmente expressar minha amizade pela África. Eu fiquei impressionado, como você, pelos comentários inconsequentes que foram feitos por alguns pesquisadores franceses e feriram, com razão, nossos amigos africanos. Quero condená-los com veemência e dizer que a França nunca considerou a África como um local para se realizar experiências médicas.
Por isso, tomei todas as precauções quando você me falou sobre a cloroquina. Estamos realizando os ensaios clínicos com a hidroxicloroquina e a azitromicina na França. Essa experimentação deve permanecer um ensaio clínico e não ser utilizada como um tratamento generalizado.
Reitero minha mensagem de amizade e de desculpas aos africanos.