OMS enfrenta maior desafio desde que foi criada

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Foto: Reprodução

Contra um inimigo invisível, um rosto ganhou notoriedade mundial: o do etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus. Diretor-geral da OMS, o ex-chanceler e ex-ministro de Saúde de seu país inicia todas suas conferências de imprensa com uma saudação aos quatro cantos do mundo.

Mas por trás de sua aparente calma e certeza em suas recomendações, esconde-se uma instituição em uma verdadeira encruzilhada.

Questionada por muitos, atacadas por outros tantos, enfraquecida, incapaz de mobilizar os recursos que necessita e altamente politizada, a OMS vive na pandemia seu momento mais decisivo, justamente quando o mundo mais precisa dela.

Para fontes diplomáticas e funcionários dentro da agência, o coronavírus poderá definir o destino da agência de saúde criada em 1948. De um lado, o governo americano deixa claro que quer usar a atual crise para moldar a entidade a seus interesses. Donald Trump, ao ameaçar cortar verbas da entidade, deixou claro que, se a OMS não se alinhar aos interesses da Casa Branca, será simplesmente asfixiada financeiramente. O argumento usado foi a hesitação da agência em alertar ao mundo sobre os riscos do coronavírus, uma deturpação da realidade.

Na OMS, o gesto foi interpretado como uma chantagem. Com um orçamento de US$ 2 bilhões e inferior a um de um grande hospital nos EUA, a agência é dependente do dinheiro americano. Em 2019, ele chegou a US$ 400 milhões.

No ano passado e antes mesmo da pandemia, o governo americano já havia demonstrado sua irritação com a agência ao tratar de temas como saúde sexual e reprodutivas. Washington conseguiu formar uma aliança com Brasil e outros países ultra-conservadores para marcar sua posição contrária ao destino que a OMS queria dar a alguns de seus programas.

De outro lado, porém, está a China. Pequim, ao longo dos últimos 20 anos, passou a colocar a OMS como uma de suas prioridades na política externa. Oficialmente, os chineses estariam apenas apoiando uma entidade técnica. Mas fontes nos corredores da organização admitem que a diplomacia chinesa passou a usar a saúde para tentar transformar e moldar sua imagem no exterior, principalmente nos países em desenvolvimento.

Com 12% do orçamento da OMS, a China não esconde que quer influência e poder.

Por uma década, Pequim contou com Margaret Chan, diretora-geral e ex-secretária de Saúde de Hong Kong. Com o fim de seu mandato, a China saiu atrás de um novo que poderia representa-los. E encontrou em um etíope.

A eleição de Tedros, em 2017, foi um espelho da disputa de poder e influência dentro da entidade. Ele concorria contra o inglês David Nabarro, o nome preferido dos americanos, dos funcionários de alto escalão da OMS e com décadas de conhecimento sobre como a instituição funcionava.

Pesou o fato de que, desde 1948, jamais um africano liderara a agência de Saúde da OMS. Ele ainda se apresentava como uma pessoa que transformou a saúde de seu país, enquanto foi ministro dessa pasta entre 2005 e 2012. Ele insistia que foi, durante seu mandato, que 3,5 mil centros de saúde foram criados no país, reduzindo a mortalidade infantil em dois terços e uma queda de 90% nas novas infecções de Aids.

Mas a campanha foi repleta de pressões. O etíope passou a ser alvo de duros ataques. Entidade como a Human Rights Watch o recriminam por fazer parte do núcleo duro do regime autoritário do país, acusado de violações de direitos humanos e repressão pela própria ONU. Um grupo de 20 entidades escreveu para a OMS pedindo que seu nome não fosse considerado.

A campanha ainda contou com acusações de que ele tentou abafar três epidemias de cólera, enquanto foi ministro da Saúde.

Documentos obtidos pela coluna ainda revelam que o Fundo Global para Aids, Tuberculose e Malária constatou irregularidade nos recursos que enviou para seu ministério e ordenou que US$ 7 milhões fossem devolvidos. Um hospital que seria construído com o dinheiro da entidade internacional ainda registrou um salto nos custos de 54%.

Assim que assumiu, Tedros saiu em busca de reconstruir alianças. Deu cargos para seus cabos eleitorais, inclusive ao Brasil. O próprio Nabarro foi chamado a assumir responsabilidades.

Não faltaram sérios deslizes. Tedros iniciou seu mandato com uma crise de credibilidade ao escolher Robert Mugabe, polêmico ex-ditador do Zimbábue, como embaixador para a tuberculose. A reação internacional diante do anúncio o levou a cancelar a escolha. “Foi uma decisão foi tomada em boa fé”, garantiu. “Alguns países indicaram que seria bom se ele fosse indicado, principalmente na África. Ele mostrou forte compromisso com o assunto”, justificou. “Lamentamos”, disse, qualificando a reação internacional de “emocional”.

O etíope, porém, disse que preferia “construir pontes”. “Confrontação e ódio não ajudam. Estou verdadeiramente preocupado com o mundo hoje”, disse em 2018.

Mas um dos pontos que interessou ao Brasil e a outros foi sua intenção de descentralizar o poder da agência, permitindo que iniciativas regionais, como a OPAS pudessem assumir parte do trabalho. Tedros, em sua plataforma, prometia dar mais atenção e recursos para países em desenvolvimento. “Não vou chegar e dizer o que um governo precisa fazer. Vou primeiro ouvir”, prometeu.

E foi justamente essa atitude que ele adotou desde o início da crise. Para anunciar a emergência internacional, no final de janeiro, Tedros optou primeiro por ir até a China e deixar claro que não iria colocar a OMS contra Pequim.

De volta a Genebra, em sua coletiva de imprensa, elogiou a China em cinco ocasiões, deixando até seus assessores vermelhos.

Internamente, o cuidado de Tedros com a China tinha um objetivo: garantir de Pequim que missões da OMS pudessem entrar no país e ver, de fato, o que estava ocorrendo. Em troca, silenciou diante da censura no país asiático, na morte de um médico que denunciou o vírus meses antes e se recusou a falar da falta de transparência.

Mas, enquanto fazia gestos políticos, o etíope também viu sua capacidade de influenciar ser corroída. No primeiro momento, Tedros pediu que países não proibissem viagens. Praticamente ninguém o escutou. Em seguida, recomendou que fronteiras não fossem fechadas e, de novo, foi ignorado.

Pior, para muitos, foi o fato de Tedros ter sido solenemente ignorado quando elevou o tom e começou a alertar ao mundo sobre o risco que o planeta enfrentava. Ele e seu time repetiam a preocupação que tinham diante da displicência de líderes mundiais.

Mas sua incapacidade de ser ouvido não é necessariamente sua culpa. Tedros, no fundo, assumiu a direção de uma entidade que tinha herdado um sistema falho. Em 2005 e como resposta à crise da Sars, a OMS estabeleceu um Regulamento Sanitário Internacional, composto por alguns dos maiores cientistas do mundo. O sistema permitiria examinar surtos pelo mundo e, eventualmente, declarar uma emergência internacional.

Mas, bloqueado por governos, o sistema não dava qualquer tipo de poder para a OMS punir ou questionar países que não seguissem as orientações em uma emergência.

Hoje, o sistema revela seus limites e coloca a OMS em seu momento mais difícil. Ao longo de mais de 70 anos, a agência acumulou histórias de sucesso na erradicação da varíola, em campanhas globais contra a lepra, cólera, febre amarela e sifilis. A imunização de crianças também foi uma conquista, assim como colocar na agenda internacional a necessidade de acesso universal à saúde.

Hoje, porém, o desafio é maior. Além da pandemia em si, a OMS é obrigada a lidar com um cenário de nacionalismos exacerbados e um profundo questionamento e desconfiança em relação às entidades internacionais.

Se não bastasse, o próprio Tedros sabia que sua entidade não estava pronta para uma pandemia. Em 2018, ao marcar os cem anos da gripe espanhola, ele alertou que o mundo continuava “muito vulnerável” a emergências de saúde.

Ele admitia que sua entidade não estava 100% pronta para lidar com uma eventual nova pandemia e anunciou que queria criar uma força internacional de milhares de funcionários, médicos e enfermeiras que pudessem ser despachados para frear um surto caso eclodisse uma nova emergência.

“Se algo ocorrer, nenhum país pode fazer as coisas sozinho”, disse. “Precisamos ter um exército de saúde para que os países com condições possam ajudar”, explicou. “Uma força de reserva que possa agir, mas também treinar funcionários locais é o que eu quero implementar”, insistiu.

Por seus cálculos, obter o compromisso de 50 países de que colocariam à disposição seus funcionários da área de saúde para uma emergência internacional já criaria um exército de “milhares de pessoas”. “A capacidade do mundo é enorme. Temos de mapear isso”, explicou.

Tedros apontou que enviou uma carta a todos os governos pedindo que oferecessem seus funcionários. “É pela solidariedade que a próxima epidemia pode ser controlada”, disse. “Há cem anos, a gripe espanhola matou mais que a Primeira Guerra Mundial. Hoje, ainda estamos muito vulneráveis e por isso temos de estar atentos a emergências”, disse.

Poucos meses depois, uma auditoria interna na OMS sustentava o que Tedros alertava. O documento contava o caso de uma emergência de saúde vivida pelo Iraque. O caso obrigava uma equipe internacional a ser enviada ao local para fornecer remédios e serviços de urgência à população. Para isso, o time formado pela OMS buscou parceiros locais que pudessem implementar a estratégia e fornecer os medicamentos necessários para tratar as vítimas e os pacientes, muitos deles entre a vida e a morte.

Mas, para que a operação pudesse ser iniciada diante da urgência sanitária, havia um obstáculo inesperado a ser superado: a burocracia. Entre a assinatura de acordos, a implementação e a entrega de remédios, a OMS levaria 57 dias para completar o processo. No total, a estratégia passou por 24 etapas administrativas para ser aprovada. Só então remédios puderam chegar aos mais necessitados – ou aos que ainda estavam vivos.

A conclusão era de que a agência, apesar de avanços nos últimos anos, ainda não estava preparada para fazer frente a uma eventual nova epidemia de grande proporção mundial.

O documento interno obtido pela coluna revelava pela primeira vez que a forma como a crise do surto de ebola foi tratada na África, em 2015, tinha sido um “fracasso catastrófico”.

Nem a auditoria e nem os alertas de Tedros foram escutados. E, em 2020, a pandemia chegou e, com ela, as campanhas racistas e até ameaças de morte contra o etíope.

Com mais de cem mil mortos, uma economia mundial em recessão e uma explosão de pobres e desempregados, a OMS insiste que a prioridade hoje não é a de encontrar quem errou dentro do sistema.

Em Genebra, muitos sabem que, quando a pandemia acabar, perguntas incômodas serão feitas sobre o futuro da entidade, sobre a transparência na China, sobre as intenções dos americanos de dirigir a agência e sobre o que querem os países do sistema multilateral.

O próprio Tedros deixou claro que haverá uma avaliação interna profunda depois da pandemia. Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, também sabe disso. E ambos têm plena consciência de que o futuro de suas entidades está em jogo.

Uol