País pode adotar fila única para leitos de UTI
Foto: SILVIO AVILA/AFP
Com os leitos de UTI no Brasil atingindo capacidade máxima, o país precisará encontrar alternativas para acolher pacientes em estado grave da covid-19, doença causada pelo coronavírus.
Especialistas falam em criar uma “fila única” de leitos do sistemas público e privado, ou então em “empréstimos” de alguns leitos privados pela gestão pública, já que há um grande desequilíbrio entre a proporção de usuários e leitos dos dois sistemas.
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Até quarta-feira (22/04), havia mais de 45,7 mil casos e 2,9 mil mortes no país em decorrência da doença causada pelo vírus.
Isolamento e distância social foram impostos no mundo todo e em Estados brasileiros para tentar ganhar tempo e impedir que o sistema chegasse a esse ponto, ficando sobrecarregado.
Mas hospitais em diferentes regiões do Brasil já estão acusando superlotação em UTIs. Isso é grave porque as unidades de terapia intensiva proveem o cuidado que pacientes de covid-19 em situações piores podem precisar para sobreviver. A falta de leitos na Itália, por exemplo, obrigou médicos a terem de optar por pacientes com mais chances de sobrevivência.
Então, quais são os mecanismos para manter leitos de UTI suficientes para o número de casos graves de covid-19 no Brasil?
A BBC News Brasil falou com especialistas para entender quais são as alternativas práticas para isso no Brasil e como funcionariam.
Para entender o problema de distribuição de leitos de internação no Brasil, é preciso primeiro entender o sistema de saúde brasileiro.
O Brasil conta com o SUS (Sistema Unificado de Saúde), sistema público de saúde universal que dá suporte gratuito para todos os cerca de 210 milhões de brasileiros, e com a saúde suplementar, representada pelos planos de saúde.
Segundo dados da Agência de Saúde Suplementar (ANS), no início de 2020, 47 milhões de brasileiros tinham planos de saúde. O número representa quase um quarto da população, que paga para atendimento e internação em hospitais privados. Ainda assim, os usuários de plano de saúde ainda mantêm o direito de acessar os benefícios do SUS.
Considerando que mais de três quartos da população brasileira conta unicamente com o SUS e comparando o número de leitos dos serviços público e privado, é fácil entender por que há um desequilíbrio no acesso aos serviços no Brasil.
Consideremos o número de leitos de UTI. O Brasil tem 55.101 desses leitos, segundo o Ministério da Saúde. Desse total, 49,8% são do SUS.
Ou seja, três quartos da população têm acesso a só metade dos leitos de UTI no Brasil. A outra metade está reservada ao quarto da população que tem planos de saúde.
Não significa necessariamente que sejam insuficientes. “Não havendo a epidemia, a dimensão que temos de leitos do SUS já seria, de uma forma geral, suficiente”, diz Pedro Amaral, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que estuda a distribuição regional da oferta de equipamentos de saúde no Brasil.
Com a epidemia, a história muda. Agora, com a “grande demanda extra que o sistema está sofrendo, a gordura da oferta de leitos – onde havia gordura, porque muitos lugares não têm – acabou ou vai acabar”, diz Amaral. “E o sistema de saúde público atinge a capacidade muito mais rápido do que o sistema privado.”
Outro problema, destaca Amaral, é a distribuição dos leitos.
De acordo com uma pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, quase 15% da população brasileira exclusivamente dependente do SUS não conta com leitos de UTI na região em que reside.
No Amazonas, por exemplo, só há leitos de UTI na capital, Manaus. A ocupação de leitos de UTI para covid-19, na cidade, já chegou a 100%.
O Ministério da Saúde diz que 3 mil leitos de UTIs de instalação rápida no Brasil estão em processo de locação. Mas a pasta não tem divulgado a taxa de utilização dos leitos de UTI de hospitais públicos ou privados. Informa, no entanto, que antes da pandemia, a taxa de ocupação dos leitos era de 78%.
Só os Estados estão atualizando os números de ocupação dos leitos de UTI, mas nem sempre diariamente. A Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo, por exemplo, divulgou na sexta (17) que o Instituto de Infectologia Emílio Ribas chegou a 100% de ocupação em sua UTI; o Hospital das Clínicas, 84,5%, o Mário Covas, 89%.
O secretário estadual de Saúde, José Henrique Germann, afirmou na semana passada que a pasta estima que hospitais públicos do Estado lotem a partir de maio, e que os novos leitos a serem montados sejam ocupados em julho.
É por isso que especialistas defendem uma fila única para os leitos de UTI.
A ideia, defendida até agora por pelo menos dois grupos acadêmicos que estudam o mercado de planos de saúde no Brasil, seria utilizar o poder, previsto em Lei neste caso, de requisitar “bens e serviços” (pagando indenização posterior) para unificar os leitos de UTI da rede pública e privada.
O paciente grave de covid-19 que precisar de uma vaga na UTI entraria em uma fila única de leitos, independentemente de ser usuário da rede pública ou privada. Funcionaria mais ou menos como funciona o Sistema Nacional de Transplantes. Os recursos seriam coordenados pelo sistema público, que pagaria o setor privado por isso.
O método já foi utilizado em outros países durante a pandemia do coronavírus. Na Espanha, por exemplo, o governo provisoriamente estatizou todos os hospitais privados.
No Brasil, a proposta é defendida pelo Grupo de Estudos Sobre Planos de Saúde, ligado à Universidade de São Paulo (USP), e pelo Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“O Brasil tem uma medicina privada sofisiticada para muito poucos. Nesse momento, esses recursos precisam ser melhor distribuídos”, diz a médica santiarista Ligia Bahia, professora da UFRJ que defende a proposta. “Vamos corrigir essa desigualdade, considerando que estamos numa emergência sanitária.”
“A ideia é que todos os pacientes graves tenham a mesma chance de ter atendimento com cuidados intensivos. A maior parte dos leitos de UTI no Brasil não são públicos. As pessoas que não têm plano de saúde vão morrer sem atendimento.”
Ela admite que dificilmente a proposta será adotada – por falta de interesse do setor privado. Por isso, diz, o grupo tem abordado os Ministérios Públicos estaduais e os Tribunais de Justiça.
Para Amaral, da UFMG, é preciso encarar a pandemia como um “choque absolutamente fora do padrão sobre o sistema, totalmente atípico”. Então “faz sentido que a solução seja atípica”.
E ele acrescenta que “nem é tão atípica assim”, já que já existe uma fila única para emergências. “Se uma pessoa chega em uma emergência em um hospital privado, ela tem que ser atendida, pelo menos até a estabilização e transferência. Temos que pensar nisso como uma emergência. Se é emergência, a fila é única”, afirma.
Ele considera, contudo, essa solução uma de curto prazo, que não resolve tudo, já que as regiões fora dos grandes centros, com população dependente do SUS, dispõem – de qualquer forma – de poucos leitos privados.
“A distribuição espacial da rede privada se orienta pelo mercado. Se a população não tem renda para pagar plano de saúde, a rede privada não oferece serviços ali porque não há público”, explica. A solução ideal, de acordo com ele, seria a ampliação, por parte da gestão pública, do número de leitos e de recursos humanos, já que “não adianta ter leitos se não tiver profissionais de saúde para operacionalizá-los”, lembra.
O secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, já afirmou que o Ministério da Saúde estava monitorando os leitos públicos e particulares. O ministro da Saúde demitido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), Luiz Henrique Mandetta, também já havia afirmado que, se o SUS precisasse de mais leitos privados, iria usá-los.
Um dos focos da covid-19 no Brasil, o Estado do Ceará passou a utilizar um hospital privado que estava fechado havia 20 anos. A Secretaria de Estado Saúde de Pernambuco também fez acordos com hospitais privados para conseguir novos leitos, e o secretário da Saúde, André Longo, já disse que o Estado pode requisitar leitos.
Uma segunda proposta para o impasse do número de UTIs é uma espécie de sistema misto: transferir apenas parte, e não a totalidade, dos leitos do sistema privado para o sistema público.
É o que defende o advogado Frederico Barbosa, consultor em regulação e especialista em parcerias público-privadas do escritório BPGA.
A ideia é criar uma “equidade” nesse sistema que é desigual. Ou seja, uma medida que garantisse leitos proporcionais ao número de usuários de cada sistema. Nesse modelo, 75% do total de leitos disponíveis nos dois sistemas ficariam para o SUS e 25%, para a rede privada.
Isso significa que o SUS “pegaria emprestado” só o número de leitos necessários do sistema privado para suprir sua demanda. Estabeleceria-se uma regra de fila proporcional no SUS e nos planos de saúde.
“É muito menos traumático transferir capacidade de atendimento adicional para o SUS do que criar uma fila única”, diz Barbosa. “Quem tem plano de saúde nem sabe qual hospital público tem que procurar. É uma questão complexa do dia para a noite criar um sistema totalmente público para a saúde – que é uma conversa que o Brasil ainda precisa ter: se vai criar um sistema de saúde público ou manter esse sistema competitivo de hoje.”
Além disso, ele diz, os planos de saúde “têm visão estratégica muito maior sobre a capacidade de atendimento dos hospitais, onde está faltando vaga, onde está sobrando, conhece a capacidade hospitalar que contrata há anos, já tem o mapa pronto disso”, facilitando essa transferência de leitos.
Além de transferir os leitos de UTI para o sistema público, também é preciso, como já se vê na União e em muitos Estados, ampliar o número de leitos de UTI. É possível fazer isso remanejando a estrutura hospitalar de hospitais privados – muitos com espaços agora menos ocupados em decorrência de cancelamento de cirurgias.
Por isso, o passo seguinte, na visão de Barbosa, seria o SUS e os planos de saúde comprarem capacidade hospitalar em conjunto. “Criaríamos forças-tarefas somando as capacidades dos planos de saúde e do SUS. Os leitos que obtivessem seriam distribuídos em proporção que representasse equidade na fila de cada um”, afirma. “Estaríamos regulamentando a competição num tempo de escassez.”
Por meio de uma parceria entre SUS e planos de saúde, ambos teriam mais possibilidade de negociação com os hospitais privados, reduzindo os custos de cada leito de UTI. “Se o governo procurar diretamente os hospitais privados para obter leitos, vai ter que pagar o preço que os planos de saúde pagariam.” Por isso, ele defende que os governos locais procurem os planos de saúde. “Se conversar com 30 planos de saúde, resolve 90% do problema.”
Para ele, no entanto, os planos de saúde não têm interesse na conversa – teriam que ser obrigados pelo governo a negociar. “Gasta-se muito mais dinheiro para obter leito adicional. É mais fácil para o plano de saúde falar que não tem capacidade. Forçar a negociação e colocar os sistemas na mesma hierarquia de espera pode impedir um pouco os planos de saúde de ficarem omissos e forçá-los a ampliar a capacidade.”
“Isso vai ser essencial para o retorno (à normalidade) do país. A disponibilidade de UTIs vai definir o ritmo do retorno. Imagina se os hospitais privados voltarem a fazer cirurgia plástica ao invés de atender pacientes com covid-19? A região inteira vai sofrer danos econômicos por mais tempo. Quanto mais aumentar a capacidade de atendimento para pacientes de coronavírus, maior será o retorno do país.”