Presidente do BC quer fim da quarentena
Foto: Sergio Lima/AFP via Getty Images
EM FALA A INVESTIDORES do mercado financeiro, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, tirou de contexto dados de um gráfico elaborado por economistas do Centro de Pesquisas de Política Econômica para defender a tese de que o isolamento social irá aprofundar a recessão.
“Esse é um gráfico que muita gente tem comunicado em palavras, que é a troca entre o tamanho da recessão e o achatamento da curva [de contaminação] que você quer atingir. Mostra que, quando você tem um achatamento maior, você tem uma recessão maior e vice-versa”, teorizou Campos Neto em uma live organizada pela XP Investimentos, uma das maiores corretoras de valores do Brasil. A fala foi acompanhada ao vivo por mais de 6 mil pessoas no último dia 4, um sábado à noite.
Na ótica do neto de Roberto Campos – ministro do Planejamento da ditadura militar e um dos maiores expoentes do liberalismo econômico no Brasil –, o gráfico serve “para ilustrar que existe essa troca [entre salvar vidas ou combater a recessão] e é uma troca que está sendo considerada.”
Na lógica fria de Campos Neto, quanto mais rápido vierem novos casos e mortes por covid-19, melhor para a economia. Mais importante é que a indústria continue produzindo e vendendo. Ainda que isso cause o colapso de hospitais e do sistema de saúde pública, forçando médicos e escolher quem atender e quem deixar morrer, é um preço razoável a pagar em nome do lucro.
A fala do presidente do BC embute uma desonestidade intelectual. O gráfico usado por ele consta da introdução do livro “Mitigating the covid economic crisis: act fast and do whatever it takes” – “Reduzindo a crise econômica da covid: agir rápido e fazer todo o possível”, em tradução livre.
Trata-se de uma compilação de artigos organizada pelos economistas Richard Baldwin e Beatrice Weder di Mauro, do Centro de Pesquisas de Política Econômica, um think tank baseado em Genebra e que desde 1983 reúne mais de 700 pesquisadores de universidades majoritariamente europeias. Lançado em 18 de março, o livro (em inglês) pode ser baixado de graça na internet.
Na obra, os pesquisadores concluem sem deixar margem para dúvidas que a recessão causada pela quarentena é uma “medida de saúde pública necessária” e que perder vidas para preservar a economia não deve sequer ser uma opção considerada pelos líderes mundiais. Talvez Campos Neto não tenha lido esse trecho da obra – se leu, preferiu se esquecer dele. Em mais de uma hora e meia de fala aos investidores, ele não mencionou a conclusão uma única vez. Não foi a primeira vez que o BC usou o gráfico fora de seu contexto original: ele havia aparecido anteriormente no relatório trimestral de inflação divulgado em março.
O chefe de Campos Neto, o presidente Jair Bolsonaro, defende a adoção do que chama de isolamento vertical. O termo é uma invenção de políticos populistas, que sem qualquer respaldo científico defendem que apenas pessoas de grupos de risco devem permanecer em casa para que se mitiguem os efeitos econômicos da pandemia. É o contrário do que orientam a Organização Mundial da Saúde e economistas de posições liberais como Henrique Meirelles, Samuel Pessôa e Alexandre Schwartsman – para quem o isolamento social no começo da crise encurta a recessão causada por ela.
Trata-se de uma tese defendida inclusive por economistas da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, a meca do liberalismo econômico, onde Paulo Guedes estudou. Até esta quarta-feira, mais de 1,8 mil pessoas morreram por coronavírus no Brasil.
Aparentemente, até a turma do mercado financeiro teve dificuldades para entender o que Campos Neto defendeu. Ao final da fala dele, o economista-chefe da XP, Marco Ross, contra-argumentou. “Para mim, não é claro que uma restrição [de circulação] mais forte é naturalmente mais deletéria para a economia. Inclusive, uma restrição parcial, seja ela o que for – a gente não sabe o que é uma restrição parcial – pode também ter um efeito econômico negativo, de aumentar o contágio e se ter que de repente se abortar o plano, voltar para uma quarentena”, ponderou.
Apesar da questão abordar economia, Campos Neto esquivou-se. “Vou deixar essa pergunta para ele [o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta] responder, só com a consideração que acho que tem vários tipos de estratégias diferentes sendo delineadas, como a estratégia de usar mais a máscara, de testar mais [para covid-19]… De novo, como não é meu campo de conhecimento, acho que tenho pouco a agregar”, respondeu.
Os artigos reunidos pelos economistas do Centro de Pesquisa em Política Econômica convergem para uma mesma conclusão: a relação entre crise econômica e novos casos de contaminação por covid-19 “certamente está por trás do atraso de alguns líderes para implementar medidas de restrição”. “A recessão é uma necessidade médica. Isso está posto. Mas governos podem e devem tentar achatar a curva da recessão econômica”, eles argumentam.
O consenso entre os autores do livro é de que os líderes mundiais devem agir rápido e fazer todo o possível para manter a economia viva durante a pandemia, principalmente mantendo empregos. Mas isso deve sempre levar em conta as medidas de contenção da pandemia. Não observá-las não é uma opção, concordam os pesquisadores cuja tese Campos Neto violentou.
A solução para superar a crise econômica exige que os dirigentes tomem as medidas necessárias para ajustar as expectativas do mercado financeiro, evitar uma fuga em massa de capital e mitigar a piora da situação das contas públicas.
Para Monica de Bolle, pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional e professora da Universidade Johns Hopkins, em Washington, nos EUA, a atitude do presidente do BC é “ignorante” e “irresponsável”. “Ele passa um recado totalmente equivocado e deixa no ar a mensagem para os investidores pressionarem o governo pelo fim do isolamento social”, ela me disse.
O economista Newton Marques, professor da Universidade de Brasília, também acredita que a fala de Campos Neto sinaliza uma pressão para flexibilizar o confinamento. “Mesmo que morra gente, os investidores não se importam, porque estão perdendo dinheiro”, lamentou.
“Bolsonaro está sendo pressionado para evitar a recessão, mas não se pode trocar vidas por economia. O problema é que o Brasil não tinha um plano para a crise, como outros países, e foi lento para reagir. Sem as medidas tomadas pelos governadores, Congresso e Judiciário, era possível que o governo tivesse implantado o [que Bolsonaro chama de] isolamento vertical”, argumentou Marques.
De Bolle ainda lembrou que o risco da economia entrar em colapso por causa das mortes em massa e da sobrecarga do sistema de saúde – que devem causar convulsões sociais e políticas – é muito maior do que o causado pelas medidas de contenção.
É exatamente o que defende um dos organizadores do estudo distorcido pelo presidente do BC. “Se você não entrar em quarentena por causa da pandemia, ela causa mais problemas e mais danos econômicos. (…) Se você não implementa uma quarentena porque quer economizar dinheiro, está enfrentando uma questão moral e não econômica”, disse Baldwin, em entrevista à BBC.
Professor de Economia Internacional do Instituto de Pós-Graduação em Estudos Internacionais e Desenvolvimento em Genebra, ele afirma que a escolha entre salvar vidas e salvar a economia é um “falso dilema”, principalmente no caso de países que têm condições de apoiar indivíduos e empresas para não quebrarem durante a quarentena.
Em sua fala à XP, Campos Neto foi na direção contrária. Ele lamentou os prejuízos causados a investidores pela pandemia e argumentou que o fechamento do comércio e dos serviços causa uma “perda econômica muito grande” no Brasil. Ainda assim, ele garantiu que o sistema financeiro nacional é “sólido” e expôs as medidas adotadas pelo governo para o setor.
O remédio que indicou para a população, porém, Campos Neto não parece querer usar. Em dado momento, ele disse o seguinte: “estou há algum tempo sem cortar o cabelo, e quando voltar a cortar não vou cortar duas ou três vezes”. Com isso, quis exemplificar que parte dos prejuízos à economia não serão recuperados. Sem querer, demonstrou que, entre a sua tese e a de Mandetta, ele fecha com o ministro da Saúde.