Presídios adotam negacionismo diante do coronavírus
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A Covid-19 levou 42 dias para chegar oficialmente ao sistema carcerário brasileiro. Na última quinta-feira, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) anunciou o primeiro caso de detento com a doença, no Centro de Progressão Penitenciária do Pará, em Belém (PA). A pandemia chega ao ecossistema que existe em estado inconstitucional de coisas, segundo o Supremo Tribunal Federal. Para especialistas consultados pela ConJur, o risco está no próprio sistema, que não reconhece sua precariedade.
O Depen mantém painel de monitoramento dos casos. Até a manhã desta segunda-feira, contava com 115 suspeitas e três detecções. Ainda não há óbitos. Os números, no entanto, devem ser consideravelmente maiores. Na sexta-feira, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal anunciou 14 presos infectados, além de outros 19 agentes penitenciários. No mundo, segundo painel do Depen, são 1.319 confirmados, com 5 óbitos e 1.229 suspeitas. A França tem mais detentos doentes: 49. Além de um óbito.
João Batista Augusto Junior, criminalista e sócio do Bialski Advogados, é enfático: “As prisões se tornaram depósitos humanos onde os detentos são trancafiados aos montes e sem mínimas condições de higiene e salubridade”. Para o advogado, são raras as unidades carcerárias que atendem aos preceitos determinados na Constituição Federal e nas Regras de Mandela, da ONU, dentre outros normativos domésticos e internacionais.
“No que tange ao ponto em que o referido departamento não reconhece a precariedade de seu sistema de atendimento de saúde nos presídios e centros de detenções provisórias causa certa espécie, pois a situação beira não apenas uma precariedade, mas verdadeira inexistência de atendimento médico digno a tratar os contaminados ou mesmo prevenir o contágio entre os detentos”, opina Francisco Bernardes Jr., especialista em Direito Penal e sócio do Bernardes Jr. Advogados.
Dados do relatório consolidado do Depen, de dezembro de 2019, indicam que 62% dos estabelecimentos penitenciários possuíam consultório médico. Com 755.274 detentos até aquele momento, o déficit de vagas era 312.925. Essa superlotação e a falta de estrutura são aspectos claros incluídos nas análises das possibilidades de perigo do coronavírus no sistema prisional desde o início da pandemia.
“Quando se pensa numa pandemia, a vulnerabilidade do sistema penal salta aos olhos e, considerando o grande déficit de vagas existente no sistema, não há outra alternativa senão iniciar uma política de desencarceramento. Se não discutirmos isso a sério, corremos o risco de testemunhar verdadeiro genocídio em nossas prisões nos próximos meses”, aponta o advogado Leandro Sarcedo, presidente da comissão de prerrogativas da OAB-SP.
“A única saída, na atual circunstância, é o desencarceramento. A observância da recomendação 62 do CNJ é fundamental; do contrário, teremos um colapso no sistema prisional e no sistema de saúde de uma forma geral”, diz Daniella Meggliolaro, presidente da comissão de Direito Penal da OAB-SP.
“O paralelo entre o sistema carcerário e a população em geral, para fins estatísticos, precisa considerar o número de presos por m² e as condições de vivência, saúde e higiene dos presos. Tanto é assim que várias doenças infectocontagiosas, tais como tuberculose e Aids atingiram níveis epidêmicos no sistema carcerário”, afirma a ex-juíza Federal e advogada Cecilia Mello.
As ações de prevenções do Judiciário são guiadas pela Resolução 62 do Conselho Nacional de Justiça. Justamente por conta do estado em que se encontra o sistema prisional brasileiro e do potencial da pandemia, as Defensorias Públicas por todo o país e outras entidades têm acionado o Judiciário pelo efetivo desencarceramento. Principalmente quanto aos presos provisórios, que em dezembro constituíam 30% da massa carcerária. Em 6 de abril, o Ministério da Justiça estimava ter havido libertação de 30 mil pessoas.
A questão já atingiu as cortes em Brasília. O Superior Tribunal de Justiça garantiu a liberação de presos cuja soltura estava condicionada ao pagamento de fiança, dos presos por dívida alimentar e tem analisado pedidos de domiciliar para presos provisórios em situação de risco. Por outro lado, negou generalizações como o HC coletivo impetrado em nome de todos os presos enquadrados no grupo de risco. Vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux recomendou sensibilidade e cautela com as consequências da soltura de presos.
“A gente tem conversado para que as medidas sejam mais efetivas”, aponta o defensor Gustavo de Almeida Ribeiro, que atua junto ao STF. “Temos tentado ações coletivas e individuais, sejam na execução ou nas preventivas. Estamos para fazer ainda a observação de alguns presídios que não tenham a menor condição. Aqueles que, sem pandemia, já seriam completamente inadequados. Ainda mais no momento em que precisam de um mínimo de salubridade para manter alguém”, adiantou.
“Talvez única providência que se tem notícia de alguma eficácia no combate a tal doença, recomendada, inclusive, pela OMS/ONU, é a implementação de isolamento individual ou no máximo de grupo familiar, algo impensável quando se está a considerar essa hipótese no contexto prisional brasileiro, dada a aglomeração de presos em cubículos com pouca ou nenhuma ventilação e sem mínimas condições sanitárias e de higiene”, afirma João Batista Augusto Junior.
Cecilia destaca que, de um modo geral, populações carcerárias tendem a necessitar de mais assistência médica do que a população como um todo. “Os presídios mantêm uma grande proporção de pessoas com maior risco de adoecer, como usuários de drogas por exemplo, e o próprio ambiente prisional contribui sobremaneira para a proliferação de doenças”, diz.
As prisões brasileiras são, de fato, terreno fértil para proliferação de doenças transmissíveis. Dados do relatório consolidado nacional do Depen mostram que, em dezembro de 2019, havia 8.523 presos com HIV no sistema carcerário. A média, de 1.139,4 casos a cada 100 mil presos, é 64 vezes maior do que a média geral da população brasileira (17,8 casos para 100 mil presos, segundo dados mais recentes do Boletim Epidemiológico HIV/Aids de 2019).
Casos de tuberculose também são vastos e inclusive motivaram pedido de Habeas Corpus coletivo pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, negado pelo STJ. No RJ, são 355 detentos nessas condições.
“Infelizmente, notícias dão conta de que medidas preventivas não estão impedindo a propagação da Covid-19 nas prisões, vulnerabilidade alertada de início pelo Ministério da Saúde. Enquanto isso, o Judiciário segue consciente de suas responsabilidades frente à excepcionalidade da situação, cumprindo o papel de guardião da lei e protetor de direitos básicos, incluídos o direito à saúde coletiva e o direito à vida”, apontou o presidente do STF e do CNJ, ministro Dias Toffoli, em artigo publicado no jornal O Globo e replicado na ConJur.