SP não tem números confiáveis sobre pandemia
Foto: NELSON ALMEIDA / AFP
“Tia, olha a chuva, tira a roupa do varal”. O alerta de uma das sobrinhas de Olga, 77, que vivia na casa vizinha não chegou a tempo. A chuva que atingiu São Paulo na semana passada molhou todas as roupas da aposentada que, naquele momento, já estava desacordada no sofá. Foi a mesma sobrinha que, minutos mais tarde, sem ouvir sinal da tia, a encontrou quase já sem vida na sala. A aposentada faleceu depois de dias se queixando de tosse, falta de ar e coriza. Foram três idas ao hospital e nenhum exame realizado. Apesar de os sintomas serem similares aos da Covid-19, no atestado de óbito a causa de morte registrada é “broncopneumonia, doença de refluxo gástrico, osteoporose, depressão”. A conclusão foi feita baseada apenas em um questionário aplicado aos parentes pelo Serviço de Verificação de Óbitos (SVO). No centro nevrálgico da maior pandemia da história recente do país, São Paulo, Olga não foi testada, nem em vida, nem após a morte, para o coronavírus. “Nunca foi feito exame de nada. É no mínimo estranho atestar que a morte de uma pessoa de 77 anos, com muita tosse e no meio de uma pandemia, foi por broncopneumonia, sem que nenhum teste fosse feito”, ressalta outra sobrinha de Olga, Joyce Lima de Sousa Fabri, 37, analista de sistemas.
A morte da aposentada é um dos indícios que apontam para a existência de subnotificações de mortes por coronavírus, especialmente depois da publicação de uma resolução que flexibiliza a maneira como os óbitos são atestados em São Paulo. Quando ocorre um óbito, a regra normal determina que, se a causa não foi atestada por um médico privado ou pelo próprio hospital, a ocorrência deve ser encaminhada para o Serviço de Verificação de Óbito (SVO), órgão municipal responsável por examinar corpos de pessoas que morrem por razões naturais desconhecidas. Geralmente, uma autópsia é feita no corpo, para se confirmar a causa de morte, que constará no atestado de óbito, entregue à família. No entanto, nos casos em que há qualquer suspeita de que o óbito possa ter sido causado pelo coronavírus, o protocolo é outro desde o último 20 de março, três dias depois do registro da primeira morte pela doença na cidade —e no Brasil.
A resolução SS 32, do Governo de São Paulo, estabeleceu que a confirmação da causa de óbitos por coronavírus não pode ser feita mais por autópsia, pelo risco que isso pode representar aos profissionais que realizam o procedimento, já que um corpo ainda pode transmitir o vírus até 72 horas após o falecimento. A mudança, segundo o documento, se baseia em determinações da Organização Mundial de Saúde, que desaconselham a realização do procedimento para casos suspeitos ou confirmados da Covid-19. “Em situação de pandemia, quaisquer corpos podem ser considerados de risco para contaminação e difusão da doença”, explica a resolução. Na prática, muitas das mortes nunca vão ser consideradas como causadas pelo coronavírus se não forem atestadas no hospital. E com o gargalo da falta de testes e de mão de obra para a realização dos exames, é possível que o número real de quem morreu pela Covid-19 nunca seja, de fato, conhecido.
A reportagem questionou a Prefeitura de São Paulo para saber quais são os protocolos seguidos em casos de mortes suspeitas pela Covid-19, quantas mortes suspeitas foram registradas até o momento, e se há um cálculo, com base nessas informações, de quantas mortes em decorrência do coronavírus podem estar sendo subnotificadas, mas até a conclusão desta reportagem não obteve resposta. Nesta segunda-feira 30, o governador João Doria (PSDB), ao ser questionado tanto sobre a possibilidade de subnotificações ou de dados superestimados, como sugerido pela família do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nas redes sociais, afirmou que “São Paulo utiliza o critério de transparência absoluta”. “Nem mais nem menos [casos registrados]”, disse. Mas a própria demora no resultado dos testes da Covid-19 pode ser um agravante na exatidão e transparência desses números. Em São Paulo, a fila de pessoas aguardando pelo resultado chega a 12.000 pacientes, segundo informações do secretário da Saúde do Estado, José Henrique Germann. Desses, de acordo com ele, 500 estão internados em estado grave. O Estado tem 2.239 casos confirmados e 136 mortes. Nas últimas 24 horas, o Estado contabilizou uma morte por hora. No país todo são 5.717 casos e 201 mortes, segundo o último boletim do Ministério da Saúde desta terça-feira 31.
Desde o último dia 20, portanto, o procedimento a ser adotado em São Paulo é o seguinte: casos de síndrome respiratória aguda grave sem diagnóstico e casos suspeitos de coronavírus com investigação em andamento devem fazer um exame que retira amostras de secreções do nariz, em até 24 horas após o óbito, caso o material não tenha sido colhido em vida. Em outros casos, a declaração de óbito deve ser preenchida pelo médico que assistiu o paciente ou que constatou o óbito. Em situações em que as informações fornecidas no prontuário médico ou por familiares não ajudam a descobrir a causa da morte, se aplica um questionário de autópsia verbal. Foi isso o que aconteceu no caso de Olga, conta Joyce. “Foi feito um questionário com várias perguntas da vida da minha tia, sobre remédios que ela tomava e muitas coisas que a gente não sabia responder”. Com base nas respostas, o atestado acusou: “causa de morte não determinada”.
“Ninguém nos perguntou se a gente abriria mão da autópsia”, afirmou Joyce. “Disseram que os protocolos eram aqueles por causa ‘da coisa da Covid-19”, ela diz. Mas para atender ao último desejo de Olga, o de ser cremada, o atestado de óbito precisa, pelas normas gerais, ter duas assinaturas de médicos diferentes. A família não só não conseguia uma segunda assinatura no SVO como também insistia para que as investigações da causa da morte fossem mais aprofundadas. “Precisávamos saber se ela morreu pela Covid-19, até porque nós tivemos contato com ela”, diz Joyce. “Além disso, quando a causa da morte é indeterminada, há várias implicações legais. Se ela deixar um seguro de vida, ninguém conseguiria sacar, por exemplo”.
A sobrinha conta que, enfim, conseguiu conversar com um segundo médico que, com base em uma série de perguntas verbais, atestou que Olga faleceu devido a “broncopneumonia, doença de refluxo gástrico, osteoporose, depressão”. O atestado ainda afirma que “autópsia não realizada conforme resolução SS32 de 20/03/2020”. “Ele colocou ali tudo o que eu disse que a minha tia tinha”, conta Joyce.
A história de Olga teve início depois do Carnaval, quando a aposentada voltou de Fortaleza. Ao chegar, queixou-se de tosse e coriza, mas achou que os sintomas se tratavam de uma gripe comum. Hoje, o Ceará é o terceiro Estado com o maior número de casos confirmados, 372. Os sintomas em Olga persistiram, por isso, ela foi à Clínica Médica Santana, uma unidade particular na zona norte de São Paulo, onde lhe receitaram um antigripal sem que nenhum exame fosse realizado. Sem apresentar melhora, a preocupação da aposentada foi crescendo à medida em que ela assistia às notícias sobre o aumento de casos de coronavírus em São Paulo. “Ela começou a ficar assustada com o que via na TV e, ao mesmo tempo, estava com muita, muita tosse”, conta Joyce. “Por isso, pediu para voltar ao hospital”. A sobrinha conta que, novamente, nenhum exame foi realizado na tia, que voltou para casa com o diagnóstico de bronquite e uma caixa de Amoxicilina nas mãos. Olga chegou em casa, tomou o remédio, lavou as roupas e as estendeu no varal.
No dia seguinte, ela voltaria pela terceira vez ao mesmo hospital, mas já chegaria quase sem vida. Morreria logo depois, em 23 de março. “Aparentemente, ela teve uma parada respiratória, porque ela tinha muita secreção no pulmão”, conta Joyce. Os médicos tentaram reanimá-la, mas não conseguiram evitar a morte, causada por “razões desconhecidas”, de acordo com o hospital. O corpo médico se recusou a realizar o teste para avaliar se ela tinha coronavírus, alegando, de acordo com a sobrinha, que a paciente não havia viajado para nenhum lugar com risco de contágio e nem apresentara febre —no entanto, o protocolo adotado pelo Brasil naquele momento já não determinava como casos suspeitos para o coronavírus apenas os relacionados a pessoas que haviam viajado.
O Centro Médico Santana confirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a aposentada foi atendida três vezes pelo hospital em março. “A história clínica em nenhum dos atendimentos era compatível com o apresentado por portadores da Covid-19 e, por este motivo, o teste não foi realizado”, afirma a nota. “Os tratamentos nos atendimentos foram condizentes com os quadros clínicos apresentados”. O hospital ainda afirmou que “o protocolo para coleta de exames para detecção da Covid-19 é o mesmo definido pelo Ministério da Saúde”. Até o momento, o Ministério da Saúde tem orientado que sejam testados apenas pacientes internados em estado grave sugestivos da Covid-19.
Seja pela falta de exames, pela demora nas análises ou pela ausência de protocolos para a realização de testes, quem está morrendo por parada respiratória ou por “causa não determinada” está sendo enterrado sob os mesmos critérios daqueles que morrem por complicações do coronavírus. Isso significa, dentre outras coisas, que não há chances de despedida. Não há velório —não só para evitar aglomerações, como também para evitar contato com o corpo possivelmente infectado— e o enterro é realizado com o caixão lacrado. “O protocolo todo adotado com ela foi de morte pela Covid-19: caixão lacrado, não deixaram que a gente a visse, não tivemos nem cinco minutos de velório”, conta Joyce. “Quando a minha mãe entrou na sala para reconhecer o corpo, dentro do caixão era papelão, não era de cetim com flores, como ela tinha escolhido. Também disseram que era ‘por causa da Covid-19”.
Sem o diagnóstico fechado, mas com todas as suspeitas levantadas, a família fica sem saber qual o procedimento correto a adotar após o enterro. “Hoje nós não sabemos se devemos fazer quarentena ou não”, diz Joyce. “Claro, estamos fazendo, mas estamos todos com medo, pois tivemos contato com ela e não sabemos se ela estava infectada”.