Virus aumenta enterros em SP
Foto: Eduardo Knapp/Folhapress
Os cemitérios públicos da cidade de São Paulo estão recebendo diariamente de 30 a 40 corpos de pessoas que morreram com suspeita de estarem contaminadas pelo novo coronavírus, mas sem que a condição fosse avalizada pelo teste laboratorial.
Por causa do atraso do Instituto Adolfo Lutz em disponibilizar os resultados dos testes de comprovação da doença, a imensa maioria desses mortos não aparece na contabilização feita pelo Ministério da Saúde como óbitos decorrentes da Covid-19.
Em quase todos os casos, os médicos que assinam os boletins de óbito, fundamentais para a permissão do sepultamento, afirmam que aguardam os resultados de exames para comprovação da causa da morte e apenas apontam suspeita de Covid-19.
Das 201 mortes registradas oficialmente no país até esta terça (31) em decorrência da infecção pelo novo coronavírus, a cidade de São Paulo respondia por 121, sendo que 79 delas ocorreram na Rede de hospitais particulares Sancta Maggiore.
Contudo, quase todos os corpos que estão chegando nos cemitérios públicos estão vindo do sistema público de saúde, que, diferentemente da rede particular, depende exclusivamente do Instituto Adolfo Lutz para o processamento dos testes de Covid-19.
“Sem a confirmação do instituto não podemos colocar a causa da morte como sendo a infecção pelo coronavírus, o caso fica em aberto, não tem jeito”, diz a médica sanitarista e coordenadora do Serviço de Epidemiologia do Instituto Emílio Ribas, Ana Freitas Ribeiro. Ela reconhece que há atualmente espera de até 20 dias em alguns casos para retorno dos resultados de testes.
A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, assim como o Serviço Funerário Municipal da capital, se recusam a informar o número total de pessoas que vieram a óbito e foram enterradas como casos suspeitos de Covid-19.
De acordo com os dois órgãos, os números são internos e não serão divulgados enquanto os casos não forem confirmados pelos exames. A cidade enterra em média 250 mortos por dia em seus 22 cemitérios municipais.
“A minha impressão é a de que as mortes que estão ocorrendo no sistema público de saúde ainda não estão entrando na contabilidade oficial por causa da sobrecarga do Adolpho Lutz, que está demorando em alguns casos até 20 dias para entregar os resultados”, diz Sérgio Cimerman , coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia e ex-presidente da Associação Panamericana de Infectologia.
Até o início dessa semana, o Instituto Adolfo Lutz tinha uma fila de 14 mil testes aguardando resultado e recebia diariamente 1.200 novas amostras para serem testadas.
Sua capacidade de processamento era de 400 testes por dia, que foi ampliado agora, de acordo com a Secretaria Estadual da Saúde, para 1.000 testes diários.
“O que estamos vendo nesse momento nesses números de óbitos é uma realidade de duas ou três semanas atrás”, diz Cimerman. “E isso me preocupa profundamente, exatamente porque teremos uma explosão de casos daqui a algumas semanas, bem no meio da quarentena, e isso servirá de argumento de que o isolamento não funcionou.”
Nos maiores cemitérios públicos de São Paulo —como os de Vila Nova Cachoeirinha, Tremembé, São Luiz, Quarta Parada e Vila Formosa —os sepultamentos de pessoas com suspeita de estarem contaminadas com o coronavírus se transformaram em rotina nas últimas semanas.
Em cada um deles, desde a semana de 21 a 27 de março, são realizados de quatro a seis enterros, a cada dia, de pessoas com suspeita da doença.
Em alguns dias, como no domingo (29) no cemitério da Vila Formosa, o maior da América Latina, os corpos de mais de dez pessoas com suspeita de terem morrido em decorrência da Covid-19 foram enterrados.
Por lá os funcionários da área administrativa estimam que cerca de 200 corpos foram enterrados com suspeita de estarem contaminados pelo novo coronavírus desde o início da crise em São Paulo.
“Nós não sabemos quantos estavam mesmo e quantos não estavam, mas aqui tratamos como se todos estivessem com Covid-19. É triste, mas precisa ser assim”, conta um dos assistentes da administração central do Vila Formosa, falando de como os corpos são embalados. Sem resultado do teste, nenhum cadáver entra na contabilidade oficial.
O Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo tem pressionado a prefeitura a divulgar os números, sem sucesso. “Nosso pessoal tem relatado um aumento enorme desses casos, mas gostaríamos que o governo divulgasse os números de suspeitos para que nós e a população pudéssemos saber exatamente como agir”, diz o diretor do Sindsep, João Batista.
“Só hoje de manhã eu fui buscar seis, sozinho”, dizia no sábado (28) um motorista da frota de carros funerários da prefeitura que omite o nome para não ter problemas.
Segundo ele, o volume cresce a cada dia. Ele relata transportar corpos que já saem do hospital embalados em sacos plásticos e são levados diretamente para as covas, sem passar por funerárias, sem passar por tratamento de conservação nem por velórios.
Foi o assim o enterro do corpo da aposentada Maria José dos Teles Santos, que tinha 77 anos. Ela começou a apresentar sintomas de gripe há mais ou menos uma semana. Piorou, teve febre, falta de ar e foi internada na quarta-feira (25) na Santa Casa. Morreu no sábado (28) por insuficiência respiratória.
Seu boletim de óbito trazia uma informação comum entre pacientes que faleceram com os mesmos sintomas que ela: morte a esclarecer, aguardando swab de naso e orofaringe.
“No hospital nos disseram que ela provavelmente morreu de Covid-19, mas que enquanto o exame não chegar não poderão determinar a causa”, diz Pedro Domingos, Leite, sobrinho de Maria José. “É uma situação complicada, não pudemos nos despedir dela, não sabemos se estamos de fato infectados, não sabemos com certeza do que ela morreu”, diz ele.
Acompanhado de quatro amigos, viu o corpo da tia ser enterrado em uma cova rasa do Cemitério Vila Formosa. Não pôde fazer a despedia. O caixão saiu do carro funerário diretamente para a sepultura.