A organização secreta dos atos antidemocráticos
Foto: Evaristo Sá / AFP
No fim da tarde da terça-feira 5, um grupo de quatro pessoas, quase escondido sob as copas das árvores de um amplo estacionamento à margem do Eixo Monumental, bem em frente ao Estádio Mané Garrincha, em Brasília, cumpria sua função: receber; registrar nomes e dados pessoais num caderno de anotações; e encaminhar apoiadores radicais do presidente da República, Jair Bolsonaro, a um acampamento montado em Brasília. Haviam chegado ali no começo da manhã e permaneceriam até o começo da noite.
A pauta principal desse coletivo, intitulado “Os 300 do Brasil”, é antidemocrática — com ataques diretos ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal (STF) e a defesa da intervenção militar. A existência dos 300 do Brasil ajuda a explicar o que ocorreu no domingo, dia 3, quando um ato em frente ao Palácio do Planalto, com a presença de Bolsonaro, voltou a pregar o fim da democracia. São esses grupos ruidosos — ainda que sem uma expressiva capacidade de mobilização — que vêm garantindo a trilha autoritária explorada cada vez mais pelo presidente.
Os quatro funcionários confirmaram à reportagem a existência de um acampamento, mas não quiseram revelar onde ele está localizado. Os 300 são agitadores da extrema-direita, atuantes nas redes sociais, com uma porta-voz: Sara Fernanda Giromini, de 27 anos, ex-militante de um grupo feminista ucraniano, o Femen, e que há alguns anos passou a se rotular como ex-feminista. Ela ganha dinheiro dando palestras sobre essa “conversão”.
Sara Winter, como se autodenomina, tem ideias extremistas e já ocupou um cargo de confiança no ministério de Damares Alves. Durou menos de um ano na pasta. Ela passou a ser o principal rosto do movimento, convocando as pessoas a viajar para Brasília a fim de integrar o acampamento e fazer um “treinamento com especialistas em revolução não violenta e táticas de guerra de informação”, como consta numa página na internet que promove uma vaquinha virtual para patrociná-los. O grupo já arrecadou R$ 60 mil, doados por 640 apoiadores.
O barulho feito na internet não se converte em mobilização numerosa. Na terça-feira, por exemplo, foi rara a procura no ponto de recepção do Eixo Monumental. Uma faixa avisava sobre a presença dos representantes dos 300 do Brasil. Uma van e dois carros ficavam estacionados, aguardando o comparecimento de apoiadores de Bolsonaro para serem conduzidos. Mas ninguém foi transportado no período em que a reportagem esteve por lá. Sara é bem taxativa em seus vídeos nas redes sociais: quem chegar à capital, deve comparecer àquele ponto em frente ao estádio, fornecer dados pessoais para uma varredura e, então, ser levado ao dormitório.
“PARA OS LÍDERES DESSES GRUPOS RADICAIS, TUDO PARECE SER MUITO MAIOR DO QUE EFETIVAMENTE É. QUALQUER IMAGEM AÉREA DE UMA MANIFESTAÇÃO DO TIPO REVELA SEU TAMANHO DIMINUTO. MAS NÃO É DESSA FORMA QUE PROMOVEM NAS REDES SEUS VÍDEOS”
Os extremistas fazem protestos e manifestações de apoio a Bolsonaro de forma esporádica: em frente ao STF, no Palácio da Alvorada, em frente ao Palácio do Planalto (como ocorreu no domingo). São poucas dezenas de pessoas, muitas delas idosas. O movimento tem o apoio de pelo menos duas deputadas federais bolsonaristas, Bia Kicis (PSL-DF) e Caroline de Toni (PSL-SC), que gravaram vídeos com o grupo no dia do ato antidemocrático em frente ao Planalto.
Um assessor parlamentar de Kicis acampou com o grupo no acampamento escondido dos “300”. Já o acampamento de barracas em frente ao Congresso foi desmobilizado pela polícia, por se tratar de um local inapropriado para esse tipo de atividade. Para tentar protegê-los, a deputada buscou uma interlocução entre os 300 do Brasil e a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. A parlamentar disse a ÉPOCA que, após a manifestação no domingo, reuniu-se com o secretário Anderson Torres para tratar de interesses do movimento. Os integrantes haviam tido desavenças com a Polícia Militar (PM), em razão da insistência em manter barracas armadas em frente ao Congresso. “Falei com o secretário que se trata de um grupo pacífico, para ele ter boa vontade com eles.” Ainda segundo Kicis, “são pessoas desarmadas”. Contudo, a deputada disse não pertencer ao grupo. “Meu assessor ajudou na chegada das pessoas. Como cidadão, ele tem liberdade para apoiar. Mas ele não está mais lá. Eu também não mantenho ligação com o acampamento, especialmente depois de receber no WhatsApp mensagens com agressões à PM, supostamente de autoria de integrantes do acampamento. Não admito xingamento aos policiais”, afirmou a deputada.
Grupos difusos e radicais como os 300 do Brasil passaram a ser comuns no dia a dia de Brasília desde a chegada de Bolsonaro. São impulsionados tanto pelos filhos do presidente quanto por entusiastas do partido que a família tenta fundar, o Aliança pelo Brasil. No domingo, esses grupos demonstraram disposição para a violência física. Repórteres foram agredidos em frente ao Palácio do Planalto e precisaram deixar a cobertura dentro de um carro da PM. A Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu que o Ministério Público do DF investigue o caso.
Outra agressão, dois dias antes da violência perpetrada contra jornalistas, teve como alvo um grupo de enfermeiros que fazia um protesto silencioso e pacífico na Praça dos Três Poderes. Com jalecos brancos e cruzes de papelão nas mãos, 60 profissionais de enfermagem lembravam a morte de 55 colegas da área da saúde no enfrentamento ao novo coronavírus. E reforçavam a importância do isolamento social neste momento, quando o Brasil se aproxima do pico do contágio. O grupo foi interpelado por dois bolsonaristas radicais, um homem e uma mulher. O homem chegou a agredir uma enfermeira. A mulher fez a seguinte afirmação a uma das manifestantes: “Quando a gente sente o cheiro da pessoa, não passa um perfume, a gente entende o que você é”.
A PGR também pediu que esse caso seja investigado. Pelo menos 12 profissionais que se sentiram agredidos registraram ou vão registrar boletins de ocorrência na polícia. E o Conselho Regional de Enfermagem (Coren) do DF entrou com uma representação contra os dois bolsonaristas junto ao Ministério Público do DF, além de ter oficiado a Polícia Civil.
Segundo o Coren, os dois agressores são Renan da Silva Sena — um militante com presença constante no cercadinho na porta do Palácio da Alvorada, onde Bolsonaro para quase diariamente — e Marluce Carvalho de Oliveira Gomes, que apagou todas as suas redes sociais depois de ser reconhecida nos vídeos em que aparece ofendendo os enfermeiros.
Aos poucos, os atos criminosos cometidos pelas franjas radicais do bolsonarismo começam a ser investigados. A própria manifestação em frente ao Planalto poderá ser objeto do inquérito aberto no STF para apurar um ato antidemocrático anterior, em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, também com a presença do presidente da República. A PGR avalia fazer essa inclusão.
Nas redes sociais dos líderes desses grupos radicais, tudo parece ser muito maior do que efetivamente é — qualquer imagem aérea de uma manifestação do tipo revela o tamanho diminuto desses atos. O extremismo, porém, é imprevisível e ganha novos contornos a cada tombo de Bolsonaro.