Auxílio-merenda do governo acaba após dez dias
Foto: Reprodução
Valores baixos e problemas na distribuição dos benefícios deixam famílias em situação de insegurança alimentar; agricultura familiar também sofre com fornecimento suspenso
Feijão, arroz, macarrão. O básico. É o que dá para comprar com os R$ 50 do cartão-alimentação que Joana D’Arc dos Santos, 60 anos, recebeu do governo de Pernambuco por cada um dos seus três netos. O benefício, distribuído para 240 mil estudantes da rede estadual, deveria substituir a merenda, suspensa por causa do fechamento das escolas durante a pandemia de coronavírus. O valor deveria cobrir um mês de despesas com comida, mas “não chega nem a dez dias”, segundo Joana.
“Só compro carne e verdura de vez em quando, porque é caro. A mistura [proteína] é mais mortadela, salsicha, frango”, conta a avó. Os netos dela – Érica, Elison e Carla, com idades entre 11 e 17 anos – tinham três refeições balanceadas por dia na escola em período integral. Mais de 60% das escolas do estado funcionam em período integral.
Na comunidade do Coque, no Recife, Pernambuco, a família se sustenta com R$ 240 do Bolsa Família mais uma renda variável da mãe das crianças, que não mora na mesma casa. Ela comercializa bilhetes de loteria, mas não está conseguindo vender nada por causa do isolamento social. Eles ainda não conseguiram o auxílio emergencial de R$ 600 do governo federal. “Não passamos necessidade porque recebemos uma doação de alimentos”, diz Joana.
A merenda escolar é a principal fonte de alimentação para várias crianças e adolescentes no Brasil, onde 14 milhões dos que estão abaixo da linha da pobreza têm menos de 14 anos. Auxílios alimentação pagos aos estudantes das escolas públicas, por estados e municípios, têm sido insuficientes para suprir as necessidades das famílias de baixa renda. E, com aulas presenciais suspensas há mais de um mês, muitas estão em situação de insegurança alimentar.
Como o Governo Federal não estabeleceu um padrão, cada localidade adotou uma fórmula diferente para manter alimentação dos estudantes. Grande parte das secretarias estaduais optou por distribuir auxílios financeiros na forma de cartões ou vales-alimentação. É o caso de Pernambuco, Pará, Piauí, Bahia, Ceará, Alagoas, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. No geral, os valores são muito próximos ao caso pernambucano. Em outros estados, como Paraná, Tocantins, Santa Catarina e Amapá, tem ocorrido a distribuição de kits e cestas básicas.
Além do valor ou quantidade de alimentos insuficientes, muitas famílias relatam que nem chegaram a receber os recursos.
Em Teresina, no Piauí, Raquelina Nascimento Nogueira, 35 anos, espera o auxílio de R$ 60 da filha Erika, de 13 anos, estudante da rede pública estadual. Elas são beneficiárias do Bolsa Família (R$ 171/mês), um dos critérios para a liberação do auxílio. “Só recebi uma cesta básica pela minha outra filha, Evelin, de 8 anos, que estuda em escola municipal. Se não fosse isso, estaríamos no zero”, relata.
Rosilda Sampaio, 55 anos, desempregada, também aguarda o benefício de R$ 50 ao filho Carlos, 16 anos, aluno da rede estadual de Alagoas. A única renda da família é a pensão do pai do menino, que faleceu, no valor de um salário mínimo.“Hoje [dia 6 de maio] pedi 1 quilo de carne fiado no açougue porque não tinha dinheiro”, conta a mãe. Ela está com suspeita de Covid-19, porém apenas com sintomas leves.
No Pará, o auxílio financeiro é um pouco mais robusto, de R$ 80 por estudante. Mesmo assim, a família do motorista autônomo Mário Botelho, de 53 anos, está no aperto. A renda dele caiu por causa da redução da demanda dos passageiros na pandemia, e a esposa está desempregada. Fora o auxílio de R$ 80, que receberam pelo filho Deric, de 17 anos, matriculado na rede estadual, a única ajuda foi uma mini cesta básica, no valor de R$ 40, por Deniel, de 5 anos, aluno da rede municipal de Belém.
“A cesta tinha arroz, café, bolacha, óleo, macarrão, leite, fubá de milho. Somando a cesta e o auxílio, deu para as refeições de aproximadamente oito dias. É pouco”, diz Mário.
As secretarias de Educação dos estados citados não responderam aos questionamentos até a publicação da reportagem.
O Governo Federal demorou um mês para regular a questão da alimentação escolar depois da suspensão das aulas presenciais, em meados de março, por conta do coronavírus.
Parte dos recursos da merenda escolar vem do Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE), que é gerido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), uma autarquia ligada ao Ministério da Educação. Pelo PNAE são atendidos 40 milhões de estudantes em todo o país, com um investimento de R$ 4 bilhões ao ano.
No ensino fundamental, o repasse é de R$ 0,36 por dia/estudante. Geralmente os estados e municípios complementam esse valor.
O FNDE definiu que a melhor forma de manter a alimentação dos alunos deveria ser decidida pelo poder público de cada localidade, porém travou a possibilidade do repasse direto do dinheiro às famílias. Para usarem o recurso, os governos locais precisam elaborar kits de alimentação, a ser entregues nas escolas ou nas casas dos estudantes.
“A operação logística é praticamente impossível diante da realidade de pandemia”, argumenta Severino Andrade, secretário executivo de planejamento e coordenação da secretaria de Educação de Pernambuco. Por isso, o governo local preferiu investir recursos próprios para distribuir o cartão-alimentação. A mesma solução foi adotada por várias secretarias de Educação no Brasil.
O cálculo do benefício considera o custo mensal que o estado tem com a merenda por aluno. Em Pernambuco, o valor é de, em média, de R$ 50/mês. A secretaria sustenta que é um valor factível, inclusive porque é muito próximo do que está sendo adotado por outros estados onde o custo de vida é maior, a exemplo de São Paulo, onde o auxílio é de R$ 55.
“Acontece que o poder aquisitivo individual é muito menor do que uma compra feita pelo órgão público, que consegue adquirir mais alimentos com menos recursos. Então, os repasses diretos às famílias acabam sendo insuficientes”, considera Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
O Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH) moveu uma ação civil pública contra o governo de Pernambuco, pedindo aumento do auxílio alimentação para R$ 150. O pedido leva em consideração valores praticados em estados como o Rio de Janeiro, onde o benefício é de R$ 100. A ação ainda corre na Justiça.
A insuficiência dos auxílios de alimentação para os estudantes tem outros desdobramentos. Um deles é o aumento do consumo de alimentos nocivos à saúde, como os processados. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o governo estadual incluiu salsicha enlatada nos kits de alimentação escolar da rede pública.
O maior consumo de processados também ocorre quando as famílias recebem o auxílio financeiro. Como os recursos são limitados, esses alimentos, por vezes mais baratos, acabam sendo preferidos na hora da compra.
O PNAE proíbe a aquisição de alimentos ultraprocessados para a merenda e prevê o uso de 30% dos recursos do programa para a compra de itens da agricultura familiar. Mas estados e municípios se livraram dessas exigências quando decidiram empregar recursos próprios para a manutenção da alimentação escolar. O que por um lado ajudaria a driblar burocracias e entraves logísticos gerou outros problemas.
Como os recursos do PNAE não estão sendo usados, em várias localidades produtores rurais também estão com contratos de fornecimento para escolas suspensos. “A gente está com 38 toneladas de requeijão pronto há 40 dias”, conta Lourival Plácido, presidente da Cooperativa de Produção, Industrialização e Comercialização Agropecuária dos Assentados e Agricultores Familiares da Região Noroeste de São Paulo (Coapar).
A produção de 1.080 cooperados – 90% famílias assentadas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – seria comprada pela prefeitura de São Paulo por R$ 900 mil. “A suspensão das compras do PNAE está afetando brutalmente a renda dos cooperados, que não estão conseguindo nem vender em outros lugares, como feiras, por causa da pandemia”, conta.
Com feiras paralisadas e entregas para escolas suspensas desde meados de março, a Associação Paraense de Apoio às Comunidades Carentes (APACC) , de Cametá, está com a produção de polpas de frutas parada no freezer. “Os agricultores trabalham e precisam ter renda para comprar outros alimentos, remédios”, comenta a responsável pela associação, Elizeth Marques de Souza.
Quando deixa a agricultura familiar de fora, o poder público acaba concentrando recursos em grandes varejistas, como redes de supermercados, avalia Andressa Pellanda. “Esses recursos poderiam estar sendo melhor distribuídos e movimentando a economia dos municípios”, analisa.
A campanha que ela coordena produziu um guia com recomendações ao poder público sobre como podem ser feitas a organização das compras e a distribuição dos kits de alimentos, o que seria a opção mais adequada para garantir a qualidade da alimentação dos estudantes durante a suspensão das aulas presenciais.
“O ideal seria a composição e entrega de kits com itens baseados nas diretrizes nutricionais nacionais. Estados e municípios deveriam ter montado um esquema de distribuição evitando aglomerações, mas faltou planejamento”, considera o advogado da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) Thalles Gomes, para quem o poder público não pode terceirizar os problemas para as famílias. Ele diz que casos como a distribuição de kits alimentares com alimentos processados, como no Rio Grande do Sul, e o cancelamento das compras da agricultura familiar em São Paulo estão sendo acompanhados pelo Ministério Público Federal (MPF) e que entidades da sociedade civil estão se organizando para fiscalizar a distribuição dos auxílios de alimentação pelo país.