Bolsonaro pode capitalizar auxílio-emergencial
Foto: F. Vieira/DPA
Cinquenta milhões de brasileiros receberam a primeira parcela do auxílio emergencial criado durante a pandemia da covid-19 até o último sábado (09/05). E o número deve crescer. Pelo menos mais oito milhões de pessoas que ainda não conseguiram receber o pagamento devem ser incluídas nos próximos dias, segundo o governo, totalizando 58 milhões de pessoas, ou 28% da população do país.
O auxílio, destinado a trabalhadores autônomos, informais e sem renda fixa, pagará três parcelas de 600 reais mensais por adulto, o triplo do valor médio desembolsado pelo Bolsa Família, e governo e Congresso já discutem uma possível prorrogação do benefício. Uma transferência de renda tão grande, com impacto sensível na vida dos mais pobres, traz consigo grande potencial de efeitos políticos e eleitorais.
O governo federal, que inicialmente havia proposto o valor de 200 reais e concordou em triplicar o valor após votação na Câmara dos Deputados, hoje celebra a cada semana o número total de beneficiados. PT, Psol e Cidadania, por sua vez, apresentaram propostas para estender o benefício.
Duas pesquisas de opinião recentes apontaram que a avaliação do governo Jair Bolsonaro na classe baixa, beneficiada pelo auxílio emergencial, registra uma tendência melhor do que a verificada nas classes média e alta.
Um levantamento do Datafolha realizado em 27 de abril identificou que, entre os entrevistados com renda familiar de até dois salários mínimos, 30% consideravam o governo Bolsonaro ótimo ou bom, acima dos 22% verificados na pesquisa anterior, de dezembro. Já entre os que ganham de cinco a dez salários mínimos, o percentual de ótimo e bom caiu de 44% para 33% no período.
Outra pesquisa, do Ideia Big Data, realizada em 28 e 29 de abril, apontou aumento da rejeição a Bolsonaro em todas as classes em relação à sondagem da semana anterior, mas em menor grau nas classes D e E. Entre os mais pobres, o percentual de ruim e péssimo subiu de 31% para 35%, enquanto entre a classes A e B saltou de 36% para 47%.
A interação entre programas de transferência de renda e votos para o governante da ocasião é um tema bem estudado nas ciências sociais. No Brasil, diversas pesquisas já se dedicaram a analisar e medir o impacto do Bolsa Família e de programas estaduais similares no comportamento do eleitor.
Um conjunto dessas pesquisas foi realizado a partir de 2009 pelo cientista político Cesar Zucco, professor da FGV/EBAPE. Por meio de técnicas estatísticas que buscam separar ao máximo o efeito do Bolsa Família de outras variáveis, ele concluiu que, nas eleições de 2006 a 2010, a probabilidade de um beneficiário do programa votar no presidente ou no seu candidato foi de 10% a 15% maior do que um indivíduo de características similares que não recebia a bolsa. Nas eleições de 2014, o efeito foi um pouco menor, em torno de 10%.
“Não é um efeito gigantesco, mas é razoável”, diz Zucco à DW Brasil. Ele esclarece que, no período estudado, o Bolsa Família não levou os eleitores a se tornarem mais petistas ou lulistas, mas a votarem mais no governo de ocasião.
O mesmo fenômeno ocorreu 2002, quando o presidente era o tucano Fernando Henrique Cardoso. Naquele ano, beneficiários de programas sociais como o Bolsa Escola e o Bolsa Alimentação tenderam a ser mais favoráveis ao candidato à Presidência do PSDB, José Serra, do que os que não recebiam nenhuma das bolsas.
Estudos sobre o programa de transferência de renda do México, o Oportunidades, também identificaram efeito parecido de benefício ao candidato do governo de ocasião e incentivo a ir às urnas.
Zucco menciona ainda evidências de que auxílios emergenciais criados em momentos de crise e que não permanecem ao longo do tempo como o Bolsa Família também geram dividendos políticos para o governante da ocasião.
Um desses casos ocorreu na Alemanha, em agosto de 2002, durante a enchente do rio Elba, a pior em mais de um século, que atingiu de forma grave a cidade de Dresden. O governo federal alemão, então liderado por Gerhard Schröder, do Partido Social-Democrata (SPD), em coalização com o Partido Verde, anunciou um pacote imediato de ajuda aos moradores de áreas afetadas, que incluiu um pagamento de 500 euros por pessoa atingida e de 5 mil euros para cada residência danificada, além de 15 mil euros para estabelecimentos comerciais afetados e 500 euros por empregado.
Os pesquisadores Michael M. Bechtel, da ETH Zurich, e Jens Hainmueller, do Massachusetts Institute of Technology, calcularam que, nos distritos afetados pela enchente, o pacote emergencial foi responsável por elevar o voto no SPD em 7 pontos percentuais nas eleições de setembro de 2002 em relaçãoo à eleição anterior, de 1998. Após a enchente, a coalizão governista se reelegeu por margem estreita. Segundo o estudo, cerca de 25% desse efeito se manteve na eleição seguinte, em 2005.
Zucco afirma que, a partir do observado em estudos anteriores, “a princípio” o pagamento do auxílio emergencial terá efeito positivo na popularidade de Bolsonaro no curto prazo. Mas ele pondera que a falta de uma resposta coordenada do governo à covid-19 e as filas e problemas enfrentados por parte da população para receber o auxílio podem reduzir esse impacto benéfico.
“O governo federal tem sido ambíguo e não é a face do combate ao coronavírus, e a dificuldade de recebimento [do auxílio] pode acabar sendo uma experiência traumática para parte dos beneficiários”, diz.
Como há beneficiários com direito ao auxílio que ainda não o receberam, o professor estima que apenas as pesquisas de opinião do final de junho serão capazes de medir com maior precisão esse efeito imediato.
No longo prazo, Zucco considera pouco provável que um eventual efeito positivo do auxílio emergencial na popularidade Bolsonaro dure até as eleições de 2022, quando o presidente pretende disputar a reeleição.
“A bolsa é por três meses e, se for prorrogada, será em um valor menor. Pode ser que não seja uma resposta do tamanho para a crise que estamos vivendo. O estudo alemão mostrou que as pessoas se lembraram até na eleição seguinte, mas naquele caso o governo foi lá na crise, se solidarizou com a pessoas e mandou bastante dinheiro”, diz.
O cientista político Henrique Carlos de O. de Castro, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador da Pesquisa Mundial de Valores (World Values Survey) no Brasil, afirma que a natureza do auxílio emergencial, temporária, é muito diversa da do Bolsa Família, assim como seus possíveis efeitos eleitorais.
“Um programa de auxílio como o Bolsa Família entra na vida das pessoas de maneira permanente, e em períodos eleitorais isso se constitui em uma lógica de ameaça do ponto de vista politico-eleitoral, com determinado grupo dizendo que o outro vai acabar com o benefício. Não é o caso de agora. O auxílio emergencial é um beneficio de maior valor, mas temporário, e distante da eleição. As pessoas sabem que vale apenas para este período excepcional”, afirma.
Para O. de Castro, Bolsonaro não deve obter ganhos políticos nem no curto prazo com o auxílio emergencial, dada as dificuldades de acesso ao benefício e a falta de uma identidade federal clara no programa.
No longo prazo, o professor da UFRGS prevê que o efeito poderá ser até contrário ao presidente na campanha de 2022, se partidos da oposição argumentarem que o benefício poderia ter durado por mais tempo ou se tornado permanente.
A estratégia de tensionamento e radicalização constante de Bolsonaro também não o ajuda, pois coloca iniciativas de combate à crise em segundo plano, diz O. de Castro.
“Ao polemizar tanto com a sociedade, o governo constrói um grupo radicalizado de apoio, mas perde a capacidade de dialogar com parte importante da sociedade que poderia apoiá-lo, e desperdiça o ganho político que poderia ter com esse beneficio provisório”, afirma.
Cynthia Coutinho Cunha, pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) que investigou o impacto do programa de transferência de renda do governo fluminense, o Renda Melhor, nas eleições de 2012 e 2014, também é cética quanto à capacidade de Bolsonaro ganhar politicamente com o auxílio emergencial no longo prazo.
“Teremos pela frente aumento do número de mortes [pela covid-19], o aumento do desemprego e uma crise econômica muito grande. Além disso, não sei até que ponto Bolsonaro será capaz de vender a narrativa de que ele é o responsável pelo auxílio emergencial”, diz.