Covid19 já atingiu 180 países
Foto: Ernesto Benavides – 11.mai.20/AFP
Entre janeiro e agosto de 2019, o Ministério da Saúde dos EUA fez um exercício de simulação premonitório.
Nele, o surto de um novo vírus respiratório desconhecido se espalhava pelo mundo a partir da China, carregado por passageiros febris em vôos internacionais de carreira, infectando milhões de americanos e matando quase 600 mil deles.
Em outubro, o relatório do experimento, chamado Crimson Contagion (contágio carmim, em inglês), apontava para o despreparo, a falta de coordenação e a insuficiência de recursos federais e locais para conter o avanço de um novo vírus no território americano.
Donald Trump foi alertado sobre a questão, mas fingiu que não ouviu. “Um dia, como um milagre, vai desaparecer”, disse o presidente americano em 27 de fevereiro. Hoje os EUA contabilizam mais de 81 mil mortos pela Covid-19, enquanto o coronavírus dá a volta ao mundo e atinge, oficialmente, 180 dos 193 países reconhecidos pela ONU.
Em 30 de dezembro de 2019, no entanto, um alerta da vida real foi feito pelo oftalmologista chinês Li Wenliang, do Hospital Central de Wuhan, uma megalópole de 11 milhões de habitantes na província de Hubei, na China.
No dia seguinte, autoridades chinesas emitiram o primeiro aviso à Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre os casos da misteriosa pneumonia —mas levariam semanas para reconhecer a gravidade da nova doença.
Três dias depois, Li recebia a visita de agentes do Escritório de Segurança Pública do governo chinês. Interrogado, foi acusado de espalhar falsos rumores.
Em 9 de janeiro, análises do vírus apontaram que a tal pneumonia era causada por um novo coronavírus posteriormente batizado de Sars-CoV-2.
Dois dias depois, o vírus provocava a primeira morte: um morador de Wuhan de 61 anos, cliente regular do mercado local de frutos do mar e animais selvagens vivos, que depois seria apontado como possível epicentro do surto global.
Um mês após a primeira notificação do governo chinês, 25 países já tinham casos confirmados da doença. Outros 30 dias depois, já eram 60 territórios com presença do vírus.
Em 30 de março, esse número havia saltado para 174 países. E, em 30 de abril, quando o Tajiquistão detectou a presença do patógeno em sua população, o coronavírus havia chegado aos atuais 180 países.
A partir de Wuhan, o vírus surgiria em alguns dos muitos territórios do entorno da China —Tailândia, Coreia do Sul e Japão. Transportado de avião, disseminado em cabines, aeroportos e banheiros pelo caminho, o coronavírus chegaria a América do Norte, Europa e Oceania, ainda em janeiro, alastrando-se pelo mapa-múndi.
Onde quer que estivessem, os primeiros cidadãos a receber o diagnóstico de Covid-19 fora da China foram rapidamente relacionados a Wuhan, o que levou autoridades a minimizarem a facilidade de contágio do novo vírus.
A transmissão entre humanos só foi identificada em 20 de janeiro, quando autoridades chinesas declararam emergência e determinaram o confinamento de quase 40 milhões de pessoas.
Na Alemanha, uma multinacional convidou para um seminário uma funcionária baseada em Xangai, que há dias havia recebido a visita dos pais, moradores de Wuhan.
Infectada pelo coronavírus, ela atribuiu os sintomas da Covid-19 ao jet-lag da longa viagem. E, sem saber, saiu infectando funcionários da fábrica.
No dia 27 de janeiro, quando surgiu o primeiro caso na empresa, todos os passos da visitante, desde então chamada de Paciente Zero, foram refeitos para rastrear possíveis infectados.
Um dos contaminados foi descoberto, mesmo sem sintomas, porque lembrou ter pedido o saleiro ao amigo que sentou do seu lado no refeitório logo depois de cumprimentar a colega chinesa com um aperto de mãos.
Apenas em 30 de janeiro a OMS declararia emergência de saúde pública global. Naquele dia, o número de casos confirmados da Covid-19 na Ásia era 8.222. Oito dias depois, somavam mais de 34 mil —entre eles, o médico chinês Li Wenliang, vítima do vírus cujo alerta lhe rendeu a repressão do regime chinês.
Fora da China, no entanto, os casos eram muitos restritos, o que permitiu que a vida de boa parte da população seguisse normal e criou a figura dos supertransmissores de coronavírus.
Foi o caso de uma sul-coreana de 61 anos. No início de fevereiro, ela ignorou febre e recomendações de autoridades locais —evitar aglomerações e usar máscara— e foi a cultos da igreja Shincheonji em Daegu, a quarta maior cidade do país.
Alguns dias depois, o número de pacientes da Covid-19 confirmados na Coreia do Sul saltou de poucas dezenas para mais de mil. Quando o país bateu 9.000 casos, um levantamento apontou que 70% deles estavam relacionados aos cultos da Shincheonji.
Foi também uma série de encontros religiosos que fez os casos de coronavírus explodirem na França, sede de um dos maiores e mais movimentados aeroportos da Europa.
O país contou oficialmente a primeira morte por Covid-19 fora da Ásia em meados de fevereiro, ainda que pesquisadores agora afirmem terem encontrado evidências de que os primeiros casos da doença tenham surgido ali ainda em dezembro.
Foi em fevereiro que a Igreja Pentecostal Porta do Sol reuniu mais de 2.000 pessoas em Mulhouse, a leste do país, num evento fechado depois mapeado como superpropagador do novo coronavírus, levado dali para América do Sul e África.
Cinco participantes do encontro francês voltaram para a Guiana Francesa com Covid-19, outros levaram a doença para Burkina Fasso, no oeste da África, e para a Suíça.
Dez dias após o encontro, a França viu o número de casos confirmados aumentar oito vezes em apenas 48 horas, deslocando o centro da crise nacional do norte para o leste do país —o que levou a Alemanha a fechar a fronteira com a França pela primeira vez em 25 anos e despertou o presidente Emmanuel Macron para a gravidade da situação.
Outro evento-bomba na Europa foi a partida de futebol entre o clube italiano Atalanta, da cidade de Bérgamo, e o espanhol Valencia em 19 de fevereiro.
Estima-se que tenham se reunido no estádio de San Siro, em Milão, 2.500 espanhóis, vindos provavelmente de avião, e mais de 40 mil italianos, que, em boa parte, deslocaram-se para lá de carro, trem ou ônibus.
Vencedores por 4 a 1, os italianos comemoraram com intenso contato físico, como era de se esperar, disseminando o vírus.
O jogo da Champions League foi depois identificado como a bomba biológica que transformou Bérgamo no epicentro da pandemia na Itália, país que teve pico de 919 mortes em um único dia.
O esquema rígido de isolamento social, o “lockdown”, foi imposto aos italianos em 8 de março, em meio à escalada de mortes.
No mesmo dia da derrota do Valencia —que teve 35% da comitiva infectada pelo coronavírus e criou um novo foco europeu da epidemia na Espanha—, o Irã acusou duas mortes por Covid-19.
Oito dias depois, o vírus havia se espalhado por 24 das 31 províncias do país. Ainda assim, autoridades religiosas da cidade de Qom incentivaram a peregrinação a seus santuários, anunciados como locais de cura espiritual e física.
Casos de coronavírus em Azerbaijão, Afeganistão, Bahrein, Geórgia, Iraque, Kuwait, Líbano, Omã e Paquistão foram identificados como de origem iraniana. Alguns foram diretamente relacionados à peregrinação a Qom, que concentra o maior número de casos do país.
Analistas avaliam que o Irã deixou a pandemia correr solta para não atrapalhar as comemorações do aniversário da revolução, em 11 de fevereiro, ou as eleições, dez dias depois.
Em Israel, país vizinho, os primeiros casos surgiram a partir do resgate de passageiros do navio Diamond Princess, isolado na costa do Japão por suspeita de coronavírus no início de fevereiro.
Nas eleições de 2 de março, o governo criou estações especiais para a votação dos cidadão postos em quarentena ao retornarem de países com Tailândia, Singapura e Itália. Nelas, os mesários já se vestiam como em filmes de ficção científica.
Antes mesmo de a OMS decretar pandemia de coronavírus, em 11 de março, o Brasil já havia registrado seus primeiros casos, no final de fevereiro, e uma série de eventos sociais de ricos e famosos trataram de espalhar o novo vírus que a elite do país importou de suas temporadas em estações de esqui na Europa.
Em 7 de março, o noivado do príncipe dom Pedro Alberto de Orleans e Bragança, 31, e de Alessandra Fragoso Pires, 26, em um almoço na Gávea, no Rio de Janeiro, e o casamento de Marcella Minelli e Marcelo Bezerra para quase 500 convidados no Txai Resort, no litoral sul da Bahia, ajudaram a disseminar o coronavírus.
No evento carioca estavam membros da família imperial, recém-retornados de viagens a Londres, Bélgica e Itália, além de alguns dos 60 sócios do Country Club do Rio que tiveram testes positivos para Covid-19 ainda no nascedouro do surto brasileiro.
Até o dia 7 de março, as três Américas juntas contavam 505 casos de Covid-19 e 17 mortes em apenas 11 de seus 35 países. Dezoito dias depois, a doença havia chegado à totalidade dos territórios americanos, somando 77 mil casos e quase 15 mil mortos.
E, no dia seguinte, os EUA passariam a Europa para se tornarem o novo epicentro da emergência sanitária global, posto que ocupam até agora.
Na Índia, uma única pessoa é apontada como supertransmissora do vírus: o guru Baldev Singh, que em março ignorou recomendações médicas de isolamento voluntário por conta de uma viagem à Itália e iniciou uma jornada de pregação por 15 vilarejos do estado de Punjab, no norte do país.
No trajeto do guru, ao menos 15 mil pessoas foram infectadas e 40 mil entraram em quarentena. Mas foi somente após a morte de Singh, em 18 de março, que descobriu-se que o líder religioso estava doente e que, além de sua fé, havia propagado o coronavírus por onde passou.
Dias antes de morrer, Singh também participou do festival de Hola Mohalla, que se estende por seis dias e, em cada um deles, reúne cerca de 10 mil fiéis. A Índia, hoje, soma 74.243 casos e 2.415 mortes por coronavírus.
Na Inglaterra, foi também o esporte a mola propulsora da epidemia. Dois eventos esportivos impulsionaram a disseminação do vírus.
Em Liverpool, outra partida da Champions League, do time local contra o Atlético de Madrid, reuniu quase 50 mil britânicos e cerca de 3.000 espanhóis, que já viviam um regime de distanciamento social em sua terra natal.
Em Gloucestershire, no sudoeste do país, um dos principais eventos hípicos do país reuniu mais de 100 mil pessoas e fez explodirem os casos da Covid-19 na região. Naquele dia, 11 de março, 44 dos 45 países da Europa já tinham mais de 23 mil casos e quase 1.000 mortes.
Na mesma data, nos arredores de Bloemfontein, na África do Sul —quando o país confirmava 13 casos de Covid-19 ligados a uma família que retornara da Itália—, ocorreu outro encontro superpropagador do vírus.
Algumas centenas de fiéis atenderam ao evento Jerusalem Prayer Breakfast, que reuniu convidados estrangeiros da França, Israel e EUA. Ao menos 67 pessoas que estiveram na celebração testaram depois positivo para Covid-19.
Uma semana depois, a África do Sul saltou para 116 casos, e o Ministério da Saúde local saiu à caça das 1.259 pessoas potencialmente expostas ao vírus na região de Bloemfontein. O país, que é porta de entrada de turistas e do fluxo de bens para o grande continente, hoje concentra o maior número de casos da África, com 11.350 infectados.
Foi o Egito, contudo, que registrou o primeiro caso africano de coronavírus, em 14 de fevereiro —um turista chinês teve exame positivo para Covid-19 ainda no Aeroporto Internacional do Cairo.
Naquela noite, o estádio da capital egípcia estava lotado com 75 mil pessoas para um festival com apresentações de estrelas do mahraganat, gênero musical ligado às favelas da região.
Dez dos 13 países que até agora não acusaram oficialmente a presença do novo vírus são ilhotas da Oceania que decretaram o isolamento de maneira precoce.
Os outros três —Coreia do Norte, Lesoto e Turcomenistão— provavelmente nunca o farão por falta de transparência, bagunça ou negacionismo.
Lesoto, uma monarquia parlamentarista encravada na África do Sul, vive dias de turbulência política e baixíssimo número de testes.
Coreia do Norte e Turcomenistão são ditaduras, e o líder turcomeno Gurbanguly Berdimuhamedow simplesmente proibiu o uso da palavra coronavírus em 31 de março.
Em uma palestra de 2015 intitulada “Não estamos prontos para a próxima epidemia”, o bilionário e filantropo Bill Gates explicou como as potências globais haviam investido em tecnologia nuclear e anti-nuclear, mas não em como deter a dispersão de um novo vírus altamente infeccioso, capaz de matar milhões de pessoas.
Entre gráficos e projeções, usou o caso da epidemia de ebola como exemplo e alerta do despreparo do mundo. “Se começarmos agora, podemos estar prontos para a próxima epidemia.”
Em meados de março, poucos dias antes do vazamento de informações sigilosas sobre o Crimson Contagion, a simulação de uma pandemia que atingia em cheio o território dos EUA, Donald Trump, que havia recebido o relatório sobre o experimento e o fracasso da resposta das instituições, declarou a jornalistas: “Ninguém sabia que haveria uma pandemia ou epidemia dessas proporções”.