Especialista diz que Bolsonaro desmoraliza o país
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A postura negacionista do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia do novo coronavírus tem causado um impacto devastador na imagem que a comunidade internacional tem sobre o País. Essa é a avaliação do pesquisador Oliver Stuenkel, coordenador da pós-graduação em relações internacionais da FGV-SP, criador do termo “Aliança dos Avestruzes”, que reúne Bolsonaro e líderes de Turcomenistão, Nicarágua e Bielorrússia, no grupo de presidentes que negam a ameaça da covid-19.
Ao adotar posição semelhante à de países antidemocráticos, o Brasil perde crédito adquirido no passado ao liderar o enfrentamento ao HIV, cita o pesquisador. “Isso afetará a maneira como outros países e as pessoas ao redor do mundo enxergam o Brasil. Não só no âmbito de saúde global, mas em todas as áreas em que haverá um questionamento sobre a credibilidade do País”, avalia.
Stuenkel fala ainda sobre como o mundo tem observado a crise política brasileira que se mistura à crise sanitária mundial. E sobre a possibilidade da abertura de um processo de impeachment contra o presidente Bolsonaro. Segundo o pesquisador, se isso vier a ocorrer, vai reforçar para a comunidade internacional a imagem de que o Brasil “está em outra realidade”. Veja os principais trechos da entrevista concedida ao BRPolítico.
BRP – Qual a origem do conceito da Aliança do Avestruz?
Oliver Stuenkel – Me chamou a atenção que o Brasil tem uma postura bem diferente da grande maioria dos países no combate ao novo coronavírus. Então, comecei a procurar outros casos de países com uma postura parecida com essa de minimizar a pandemia ou negar a existência de uma ameaça séria. Eu apenas pensei que o mito do avestruz seria a melhor maneira de descrever esses países. Acredito que ele não faça isso na vida real – colocar a cabeá embaixo da terra quando está ameaçado -, mas por algum motivo ele tem essa reputação. Então achei interessante porque o número de países que ativamente minimiza, questiona e se posiciona contra medidas de distanciamento social hoje é muito pequeno, e a maioria dos líderes que opta por essa postura são de países não democráticos. O Brasil é o único país democrático que tem uma postura negacionista.
Depois de algumas falas mais consistentes em relação aos perigos do vírus, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem voltado com um discurso mais negacionista. Ele é um candidato a entrar para a aliança?
Sim, exatamente. O Trump parece adotar novamente essa postura mais negacionista em relação à questão. Mas obviamente que essa categoria proposta não é fixa. Conversei recentemente com uma pessoa da Nicarágua que levou o conceito para lá, e ele me disse que o país agora está começando a adotar uma postura mais pragmática em relação ao vírus. Outra pessoa também me disse que além do Turcomenistão, o Tajiquistão também tem uma postura altamente questionável alegando que não há nenhum caso no país. Quando a gente olha, o Brasil tem, é claro, medidas de combate, então o conceito ele é mais simbólico, não uma metodologia rigorosa. Mas é inegável que nesses países há uma postura negacionista. O Trump parece adotar agora novamente. Ele meio que por um tempo chegou a se afastar desse grupo, mas agora voltou atrás.
Voltando ao caso brasileiro, há um certo rebaixamento do País, enquanto democracia, ao ser colocado ao lado desses países antidemocráticos, não?
Sem dúvida. Porque há um consenso global de que a pandemia é o principal desafio que a humanidade enfrenta nesse momento. Então, a atuação de cada país ganha muita visibilidade e isso é uma espécie de um cartão de visitas. Assim, a postura negacionista do Bolsonaro ela passa a representar o País e isso tem um impacto devastador para a reputação do Brasil. Isso afetará a maneira como outros países e as pessoas ao redor do mundo enxergam o Brasil. Não só no âmbito de saúde global, mas em todas as áreas em que haverá um questionamento sobre a credibilidade do País. Porque obviamente que um país que diante deste desafio adota uma postura negacionista, as pessoas também perguntarão o que o país vai fazer em outras áreas, com outros tipos de desafios, como o da mudança climática, e isso é visto como um problema. Na diplomacia, um país se destaca porque lida muito bem com uma situação e passa a servir de exemplo para outros ou porque consegue oferecer algum bem público global, por exemplo, a doação de máscaras, que permite que o Estado assuma alguma liderança. O Brasil, nesse caso, vira um exemplo da má gestão e ninguém se inspira no país. O Brasil vira um problema global: os casos crescendo e a apostura brasileira se mantendo assim, não será estranho se por um tempo seja difícil sair do Brasil, porque outros países vão tomar muito cuidado com o Brasil, e isso pode impactar na maneira como os brasileiros são vistos lá fora, porque serão associados a essa postura negacionista. Além disso, não há nenhuma chance de o País liderar alguma resposta conjunta regional. Os países da América Latina não olham para o Brasil como um modelo a ser seguido, pelo contrário.
É uma postura que não condiz com a expectativa que a comunidade internacional tem de uma democracia como o Brasil, com a tradição diplomática que o País tem?
Isso! A tradição diplomática e também, sobretudo, a reputação e a tradição na área da saúde global. O Brasil teve um destaque muito grande, quando José Serra foi ministro da Saúde, e o País liderou uma aliança de países em desenvolvimento, com a Índia e a África do Sul contra a pandemia do HIV/Aids. E isso sempre me surpreende quando eu viajo para países africanos, para a Ásia, que muitas pessoas lembram disso, o que mostra que o Brasil articulou uma reputação impressionante. E até recentemente foi um país modelo no combate contra a Aids. A ONU chamou o Brasil de país modelo há menos de dez anos. O impacto para a imagem o brasileiro é até pior do que para a população do Turcomenistão, porque as pessoas olham para esses países sabendo que é uma ditadura onde o governo pode fazer o que quiser e as pessoas não têm como controlar. Mas no caso brasileiro, a perplexidade internacional é ainda maior porque se trata de uma pessoa eleita, não é uma pessoa que deu uma guinada, é alguém que foi eleito negando a ciência. Então essa pessoa realmente entrega o que prometeu, de certa maneira. Eu diria, portanto, que essa atuação afeta muito mais o Brasil do que afeta a Bielorrússia ou o Turcomenistão. Porque gera quase que um fascínio internacional maior sobre “como algo assim pode acontecer em um país democrático?”.
Quais outras consequências que o Brasil pode vir a sentir pós-pandemia por integrar simbolicamente essa aliança?
Isso depende de se o governo atual se manterá no poder ou não. Porque se você tem um impeachment e vem um novo presidente e passa a seguir a risca as recomendações da OMS, isso pode ter um tipo de impacto. Mas, assumindo que esse governo vai se manter no poder, o Brasil perderá o assento na mesa na hora de discutir outros desafios.
BRP – Desafios além das questões de saúde?
Sim, em relação a outras áreas também. Veja que estamos falando de um país em que o chanceler compara o distanciamento social com campos de concentração, em que o presidente responde “e daí?” a um jornalista. É isso que vai dominar a imagem do País e fortalecer a imagem de que o Brasil é governado por um presidente que vive em uma realidade paralela. Por isso, o País perde a sua credibilidade em outras áreas também. A partir desses exemplos, ao chamar o Brasil para uma discussão como a sobre mudança climática, eu já preciso assumir que o governo brasileiro está mandando uma pessoa que não necessariamente acredita nos conceitos básicos que rege essa área. E isso vai levantar dúvida sobre todos os representantes do Brasil, pelo País ser tão marcado por essa atuação estranha na área de saúde pública. Isso, basicamente, leva a um colapso na credibilidade do Brasil em outras áreas também, mas sobretudo de entidades ligadas ao governo. Se olhamos para os grandes desafios que a comunidade internacional enfrenta, o Brasil, por razão da sua atuação, passa a ter um espaço muito menor do que tinha antes.
Como a comunidade internacional tem encarado essa possibilidade de o Brasil passar por um novo processo de impeachment em tão curto período?
Isso reforça a imagem que a América Latina tinha e meio que perdeu no início dos anos 2000 por causa do boom das commodities, quando a América Latina passou por uma fase de bastante estabilidade. Mas mais um presidente que não consegue terminar o mandato reforça essa imagem do Brasil como um país instável politicamente, o que para investidores é um ponto de preocupação, pois menos o país se torna atraente e mais ele vai demorar para alcançar a recuperação econômica. E o fato de você já ter hoje uma crise política no meio da pandemia, quando todos os outros países passam por um processo de unificação onde, em geral, com raras exceções – o Trump é uma delas -, você tem um grande aumento nas taxas de aprovação – e isso é global – porque em momentos de crise assim os países apoiam as suas lideranças no enfrentamento dos desafios e eles são tão urgentes que não é conveniente sobre se vamos tirar ou não o presidente. O que penso que fica evidente é que esse processo, se vier a ocorrer, ou já com isso que está acontecendo agora, já reforça um pouco essa imagem do Brasil de instabilidade e, de certa maneira, projeta o Brasil como um país a parte, que além de não responder bem à pandemia, também passa por uma crise política. Isso reforça a imagem de que o País está em outra realidade.
As recentes demissões de ministros também não colabora muito com uma melhora de cenário, não é mesmo?
A saída de Sérgio Moro (do Ministério da Justiça e Segurança Pública), a saída do (Luiz Henrique) Mandetta e a marginalização do (ministro da Economia) Paulo Guedes revelam ainda mais essa crise porque essas pessoas, apesar de todas as críticas que nós possamos ter, deram ao governo um verniz de normalidade. Até mesmo na forma como eles se comportam, isso traz um resquício de adultos na sala. Mesmo o Mourão também tem uma imagem razoável no exterior. Então essas pessoas, e principalmente a partir da saída do Moro, que é uma pessoa que investiu muito na sua rede internacional, elas mexem com a percepção de que há um aumento na radicalização do País.