Especialistas temem golpe militar no Brasil

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Antonio Cruz – 27.fev.20/Agência Brasil

A divulgação de notas pelo Ministério da Defesa para reforçar seus compromissos institucionais já indica uma deterioração do ambiente político do país, segundo analistas ouvidos pela Folha.

Nas últimas três semanas, a pasta chefiada pelo general Fernando Azevedo e Silva se pronunciou duas vezes por meio desses comunicados para reafirmar sua “missão constitucional” e seu papel na manutenção da “paz e a estabilidade”, diante de manifestações pelo país a favor de intervenção militar em benefício do presidente Jair Bolsonaro.

Para especialistas ouvidos pela reportagem, só o fato de os militares terem de vir a público para reagir a essas solicitações antidemocráticas e para destacar o comprometimento com a ordem vigente já proporciona uma preocupação.

A publicação mais recente da Defesa ocorreu na segunda-feira (4), um dia depois de Bolsonaro novamente participar em Brasília de ato com pedidos de intervenção militar.

“Temos o povo ao nosso lado, nós temos as Forças Armadas ao lado do povo”, disse o presidente, em frente a apoiadores críticos ao Congresso e ao STF (Supremo Tribunal Federal).

A nota assinada por Azevedo, um dia depois, afirmava: “Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado, que consideram a independência e a harmonia entre os Poderes imprescindíveis para a governabilidade do país”.

O professor de relações internacionais da UnB (Universidade de Brasília) Antonio Jorge Ramalho da Rocha, que estuda temas relacionados à Defesa, diz que o fato de os militares sentirem a necessidade de se pronunciar a respeito “implica reconhecer que há atores políticos importantes considerando” a alternativa” da intervenção.

Ramalho da Rocha entende que esse tipo de nota seria o equivalente aos Correios divulgarem um comunicado prometendo “entregar cartas para todas as pessoas”. “Está errado vir a público ter que dizer isso.”

Carlos Fico, professor de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro que pesquisa o regime militar e as Forças Armadas, diz que as iniciativas do atual ministro da Defesa indicam a volta a uma época em que os militares eram “garantidores da democracia”.

“Estamos a todo momento tendo de ouvir do comandante do Exército, dos militares em geral, que vai haver observância da Constituição, a permanência da democracia.”

Ele também critica o fato de as notas não conterem uma condenação das “iniciativas autoritárias, do presidente ou de outros setores”.

Outro acadêmico, o professor sênior da Universidade Federal de São Carlos (SP) João Roberto Martins Filho, entende que as notas foram divulgadas principalmente em resposta a questionamentos da imprensa.

Na mais recente delas, o Ministério da Defesa chama de inaceitável “qualquer agressão a integrantes da imprensa” —uma referência ao ataque a profissionais do jornal O Estado de S. Paulo no domingo passado (3), também em ato em Brasília.

O professor afirma que não há precedentes de pronunciamentos desse tipo das Forças Armadas desde o fim do regime militar. “Porque nenhum presidente da República, desde 1985, fez esse discurso de confronto com Judiciário e Legislativo, a quem eles respeitavam profundamente.”

Para Martins Filho, Bolsonaro, ao inflar críticas aos demais Poderes, tem conseguido criar uma unidade no meio militar contra o Supremo, principalmente depois que o juiz decano da corte, Celso de Mello, determinou que três generais ministros prestem depoimento no inquérito que investiga a suposta interferência política na troca do comando na Polícia Federal determinada por Bolsonaro.

Em despacho na semana passada, Celso de Mello disse que os depoimentos podem ocorrer de maneira coercitiva, “debaixo de vara”, caso os generais não compareçam.

“Bolsonaro foi tentando e tentando até criar uma causa que unifique [os militares]. Nesse caso ele conseguiu: há uma tensão no meio militar com o Supremo.”

Para o professor Ramalho da Rocha, o presidente, que é capitão reformado, tenta se colar às Forças Armadas para se valer do prestígio dessas instituições e legitimar seu modo de governar. “Tenta trazer as Forças Armadas de uma associação com o Estado para uma associação com o seu governo. Isso é muito perigoso.”

Outro risco, afirma o professor da UnB, envolve a atuação de militares da ativa em postos-chave de seu governo, como a Secretaria de Governo, chefiada pelo general Luiz Eduardo Ramos.

“Essas pessoas passam a ter uma lealdade não mais à unidade de comando estabelecida pela instituição, mas a seu chefe imediato, que é o governo. Pode gerar cizânia dentro das Forças Armadas, lealdades distintas.”

Na manifestação em Brasília no último domingo, em um contexto de críticas ao Supremo, Bolsonaro falou em uma situação “limite”. Em abril, em entrevista no Palácio da Alvorada, disse: “Eu sou, realmente, a Constituição”.

Os apoiadores de uma intervenção militar costumam afirmar que a própria Constituição prevê que as Forças Armadas podem tomar esse tipo de iniciativa.

O artigo 142, que trata do papel dos militares no país, diz apenas que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Em 2017, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do Ministério Público Federal, expediu nota criticando essa interpretação da Constituição e afirmando que a postulação de um levante pode ser enquadrada como crime inafiançável.

“Não há no ordenamento jurídico brasileiro hipótese de intervenção autônoma das Forças Armadas, em situação externa ou interna, independentemente de sua gravidade.”

O professor Carlos Fico considera muito difíceis de se concretizarem as possibilidades de uma ofensiva militar sobre o Judiciário ou o Legislativo inflada pela mobilização de apoiadores extremistas das Forças Armadas e do presidente.

Para ele, a perspectiva para o meio militar é de desgaste em sua imagem pela associação com o governo Jair Bolsonaro. “O fracasso dessa atual conjuntura política é certo. Fatalmente esse governo não vai dar certo, e isso acabará caindo no colo do Exército.”

O QUE DIZ A CONSTITUIÇÃO SOBRE AS FORÇAS ARMADAS

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constituci onais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”
Além disso, lei complementar de 1999 prevê, de modo compatível com o papel estabelecido na Constituição, a participação de militares em operações de paz, reforço à polícia de fronteira, cooperação com a Defesa Civil, entre outras ações.

Notas recentes do Ministério da Defesa

20.abr
“As Forças Armadas trabalham com o propósito de manter a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal. O momento que se apresenta exige entendimento e esforço de todos os brasileiros. Nenhum país estava preparado para uma pandemia como a que estamos vivendo. Essa realidade requer adaptação das capacidades das Forças Armadas para combater um inimigo comum a todos: o coronavírus e suas consequências sociais. É isso o que estamos fazendo.”

4.mai
“As Forças Armadas cumprem a sua missão constitucional. Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado, que consideram a independência e a harmonia entre os Poderes imprescindíveis para a governabilidade do país. A liberdade de expressão é requisito fundamental de um país democrático. No entanto, qualquer agressão a profissionais de imprensa é inaceitável. O Brasil precisa avançar. Enfrentamos uma pandemia de consequências sanitárias e sociais ainda imprevisíveis, que requer esforço e entendimento de todos. As Forças Armadas estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade. Este é o nosso compromisso.”​

Folha De S. Paulo