General do governo ameaça “ministros do STF”
Foto: Moreira Mariz/Agência Senado
Horas depois de o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), ameaçar buscar debaixo de vara os ministros e generais Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Walter Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) uma tempestade desencadeou-se em grupos de WhatsApp e em conversas privadas de militares. Ela chegou aos ouvidos civis, na maioria das vezes, por meio de entrevistas ou pelo texto de repúdio do Clube Militar, a chamada Casa da República, no Rio.
Uns poucos escreveram sobre o episódio. O general Luiz Eduardo Rocha Paiva, que tem cargo de assessor no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, distribuiu aos amigos um artigo. Após afirmar que a crise entre os Poderes ruma “em direção à ruptura” em meio a uma emergência sanitária, ele adverte: se tudo desaguar “em convulsão social e anomia”, os militares vão intervir. “Essa indesejável presença irá acontecer para salvar o próprio Estado de Direito, a democracia e a paz interna.”
Rocha Paiva continua. Enxerga excessos nas ações dos Supremo para conter os ímpetos de Jair Bolsonaro. “Quem tem certeza da própria autoridade moral não precisa decidir com ameaças provocativas e inúteis. Serenidade e bom senso é o que se espera das autoridades da República, ao invés de egolatria nociva e disruptiva em momento tão delicado.” Ocorreu ao general lembrar a famosa indagação atribuída ao marechal Floriano Peixoto, quando este soube da hipótese de ministros do Supremo soltarem os envolvidos na Revolta da Armada. “Não sei amanhã quem lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão.”
A exemplo dos generais – como Ajax Pinheiro, hoje no STF – que enxergavam uma conspiração no Brasil para tornar o País em uma Venezuela – plano que o governo parece executar –, Rocha Paiva e seu texto foram vistos como uma ameaça. “Os generais precisam ler o Código de Processo Penal. Nele está o artigo 218, que autoriza, no caso de a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz a requisitar que ela seja conduzida por oficial de Justiça, que poderá solicitar o auxílio da Força Pública”, diz o procurador de Justiça João Benedito de Azevedo Marques. Ele prossegue: “Generais não são imperadores. São cidadãos e, como todos os demais, devem se submeter ao texto da lei.”
É conhecido o fato de que a República nasceu sob o signo do soldado-cidadão. Era ele que reivindicava o direito de ser ouvido e respeitado no Império, bem como contribuir para a progresso da Nação. Se então se acumulavam os agravos aos homens das armas, também incomodava à mocidade militar o privilégio, em todas as suas relações com a sociedade, como se dizia à época. E entre os privilégios, o maior de todos eles: o monástico, que se afirmava inviolável e irresponsável. A defesa da honra militar era usada ainda pelos republicanos para galvanizar a guarnição do Rio.
Oliveiros Ferreira, em sua obra Elos Partido, aborda o tema que alguns pretendem pôr na mesa da atual crise: o papel da honra, em vez da legalidade, na vida militar. É ela que fez o general e deputado federal Roberto Peternelli (PSL-SP) considerar que o agravo de Celso de Mello aos três generais-ministros atingia a todos do estamento. Um colega seu, também general de divisão, afirmou que “cabe ao comandante do Exército, como chefe de fato e de direito de todos os militares da ativa e da reserva do Exército Brasileiro, exigir respeito, rejeitar os termos da convocação e, se assim for, fazê-la cumprir pelos meios julgados adequados”.
A República, assim, parece se transformar em um grande Conselho de Justificação, o tribunal de honra cuja decisão final deve ser homologada pelo comandante da Força. E as questões do Direito – nas palavras de Azevedo Marques – seriam apenas um problema dos paisanos, dos civis, reduzidos à condição de cidadãos de segunda categoria, aos quais se obriga o cumprimento da lei. É verdade –e assim enxergam criminalistas ouvidos pela coluna – que a citação à condução debaixo de vara não era obrigatória. Chegou-se a um limite? Àquele pretendido por Bolsonaro para mostrar que a vara do Supremo é curta? “Onde o ministro quer chegar? Vai prender o Exército?” questionou Peternelli.
O que uns poucos militares – sob a condição de anonimato – se perguntam é por que os generais-ministros não pensaram, antes de aceitarem o convite para participar deste governo, que a vida pública reserva esse tipo de dissabor aos que nela se aventuram. Nada mais longínquo das situações resolvidas pela ordem, pela disciplina e hierarquia do que o ambiente dos embates parlamentares. Não calcularam os três que a relação com um presidente como Bolsonaro – com sua personalidade errática, impulsiva e indisciplinada –poderia lhes render intimações e o envolvimento em ações judiciais? Quem preza pela sua honra, deve zelar pela suas escolhas.
Atribuir ao Supremo e ao Congresso os dissabores proporcionados pelo descontrole de Bolsonaro em meio à pandemia e ao deboche presidencial diante de 11 mil mortes no País, é enxergar os problemas no telhado do vizinho de forma estranhamente nítida, sem perceber que a própria vidraça está quebrada. E quem jogou a pedra não tinha braço forte o suficiente para arremessá-la desde o outro lado da Praça dos Três Poderes. Foi a mão amiga do presidente que fez o estrago. “Como dizer que se defende a democracia e os poderes constituídos quando se comparece à manifestação pedindo um golpe?” pergunta-se o procurador Azevedo Marques.
Um dos generais que se revoltara com o despacho do Supremo, lamentou: “Uma pena que falte a Bolsonaro tato político, que ele não tem, e se comporta como um macaco na casa de louças”. Sabem, portanto, os militares as fontes dessa crise. E é sob o signo dos princípios da República que os generais-ministros de Bolsonaro vão depor amanhã. Trata-se da igualdade perante à lei, aquela que inexistia no Império e, assim, vedava ao Judiciário alcançar a figura de dom Pedro II. É este o princípio que aqueles que buscaram no passado fugir do exame dos tribunais por meio de infindáveis recursos sempre quiseram driblar. E aqui, cada vez mais, o governo atual não só parece emular seus antecessores. Pior, segundo Sérgio Moro, ele os ultrapassa.
Peternelli diz que amanhã será um dia de escolhas difíceis para os generais em Brasília. Eles não têm nada contra a intimação – diz –, mas têm a honra a preservar. Há três semanas, foi a vez de Moro. Em 2002, fora a vez de Azevedo Marques, que se demitira da Secretaria Nacional de Justiça, porque o governo não quis intervir no Espírito Santo para combater o crime organizado. Cumprir a ordem do Supremo será mais um lance no xadrez dessa crise. E ele será dado por um governo que não conta mais com o consenso que manteve na caserna, desde seu primeiro dia. Os últimos acontecimentos, da queda de Moro à entrega de cargos e verbas ao Centrão, romperam sua imagem de moralidade aos olhos verde-oliva. Mas não só. As críticas se multiplicaram.
Uns se ofenderam com as insinuações golpistas do presidente. Duas dezenas de oficiais da ativa compartilharam em suas redes sociais a nota do Ministério da Defesa desmentindo que as Forças Armadas fossem um instrumento de governo. Um general mudou o nome de seu perfil e o protegeu antes de compartilhar crítica ao comportamento do presidente na pandemia. Outro oficial, um tenente-coronel de Cavalaria, escreveu ao lado da foto de Moro: “A minha melhor continência a esse Patriota!” E repetiu sua frase: “Faça a coisa certa, sempre”. Um slogan que, em 2022, pode dizimar Bolsonaro e seu governo, cada vez mais entregue ao deboche de ministros, como o dançarino Weintraub. Os militares voltaram à política. E não parecem dispostos a deixá-la.