Governo reconhece que protocolo da cloroquina fracassou
Foto: HUGO BARRETO/METRÓPOLES
Quase 10 dias após o Ministério da Saúde mudar o protocolo do uso da cloroquina no tratamento da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, a pedido do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), nos bastidores técnicos do governo admitem que a guinada não obteve os resultados esperados, ou seja, não houve adesão em massa no meio médico.
A ampliação do uso do medicamento para casos leves da doença ocorreu em 20 de maio. Bolsonaro defende a droga como uma alternativa contra a infecção. Cientistas ao redor do mundo e a Organização Mundial da Saúde (OMS) interromperam estudos, não indicam o uso, atestam que não há indícios sólidos de eficácia e alertam para graves efeitos colaterais.
O Metrópoles ouviu duas fontes do alto escalão da pasta sob condição de anonimato. Mesmo sendo uma bandeira defendida de forma veemente pelo presidente, a equipe técnica que assessora o Ministério da Saúde é categórica: não houve o impacto esperado pelo Palácio do Planalto.
Dois motivos ancoram o resultado. O primeiro é ligado às recomendações da OMS e de outras entidades científicas que, na visão desses técnicos, contrastam com o entendimento do governo brasileiro. Isso criou insegurança no uso e impediu as prescrições. O outro é a possibilidade de questionamento jurídico do médico, mesmo quando o paciente assume o risco ao assinar o Termo de Ciência e Consentimento.
Um interlocutor da Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde explica que as publicações de artigos internacionais contrárias ao uso do medicamento impactaram a iniciativa. “Como a comunidade internacional tem estimulado o não uso da cloroquina, apresentando estudos importantes nas últimas semanas, o protocolo ficou enfraquecido”, conclui.
Outra fonte da pasta, ligada à Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), tem a mesma compreensão, mas é menos crítica. “O protocolo baliza o uso no SUS [Sistema Único de Saúde] e preserva o direito do médico prescrever e de o paciente aceitar. A mudança não significou necessariamente uma nova prática nos hospitais”, pondera.
Logo após ser sacramentada, governadores rechaçaram o uso da cloroquina, como fez o governo de São Paulo. O mais recente caso ocorreu no Rio Grande do Norte. A Secretaria Estadual da Saúde trata desde abril pacientes com Covid-19 usando o medicamento. Na próxima semana, o órgão deve publicar um normativo suspendendo o uso. Recife, capital pernambucana, retirou o medicamento do guia de cuidados da cidade.
Contrária ao uso, a deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP) apresentou nesta semana um pedido à Procuradoria-Geral da República (PGR) para proibir o novo protocolo do medicamento aprovado pela Ministério da Saúde. A parlamentar cita a falta de comprovação da eficácia do remédio como argumento.
Cabe ao médico a decisão de usar a substância e é necessária a manifestação por escrito da anuência do paciente com termo de responsabilidade. De acordo com a advogada Mérces da Silva Nunes, especializada em Direito Médico, o termo serve para afastar a responsabilidade do profissional.
“No caso da cloroquina, o médico tem o dever de informar ao paciente os efeitos adversos mais frequentes que aquele medicamento pode provocar. Por ser ainda um remédio experimental para o coronavírus e com muitos efeitos colaterais, o paciente pode ficar em uma situação complicada caso queira contestar algum problema futuro em uma discussão judicial. Há necessidade de prudência e cautela no uso da cloroquina, que deve ser feito somente mediante prescrição médica e desde que confirmado o diagnóstico de Covid-19”, alerta.
A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) não recomenda o uso da cloroquina associada, ou não, a azitromicina, enquanto não houver evidências científicas definitivas.
“No entanto, para os pacientes que optarem pela realização do tratamento, orienta que, desde que resguardada as condições sanitárias necessárias para minimizar o risco de contágio de profissionais de saúde e outros pacientes, que sejam realizados eletrocardiogramas a fim de avaliar a evolução do intervalo QT [distúrbio do ritmo cardíaco], de forma a subsidiar o médico quanto à pertinência de se persistir no tratamento. Para tanto, a Telemedicina pode ser uma alternativa viável para suportar essa iniciativa”, afirma, em nota.
A imunologista e oncologista Nise Hitomi Yamaguchi, diretora do Instituto Avanços em Medicina, é uma das poucas referências médicas que defendem o uso. Ela é próxima do governo Bolsonaro e chegou a ser cotada para o cargo de ministra.
“Não há comprovação científica de nível A [estudos randomizados, prospectivos, controlados] sobre a eficácia desses medicamentos, mas também, não há comprovação científica nível A de que esses medicamentos não funcionam. O único estudo randomizado publicado foi o do Amazonas, que não concluiu que o protocolo não funciona, mas sim, que doses acima da dose de segurança são tóxicas”, salienta Nise, em nota.
Na última segunda-feira (25/05), a OMS informou que suspendeu testes com cloroquina e hidroxicloroquina contra a Covid-19. A decisão, uma medida de cautela que poderá ser revisada, foi tomada depois que a revista científica britânica The Lancet publicar estudo com 96 mil pacientes que apontava maiores taxas de mortalidade em pacientes que foram tratados com a droga.
Após a decisão da OMS, o Ministério da Saúde afirmou que monitora um banco de dados com mais de 200 protocolos de diversos países e que as orientações do governo brasileiro estabelecem o direito do paciente em optar pela medicação.
A mudança neste protocolo resultou na demissão de dois titulares do Ministério da Saúde: o médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta e o oncologista Nelson Teich. Atualmente, a pasta é comandada interinamente pelo general Eduardo Pazuello.
Apesar de o Ministério da Saúde ter mudado a recomendação, o governo fez uma ressalva técnica no documento admitindo que, na prática, a droga não tem eficácia comprovada.
O protocolo prevê o uso do medicamento para pacientes com sintomas leves, bem como crianças, gestantes e mulheres que tiveram filhos recentemente.
Entre as fontes de embasamento, o documento cita o Conselho Federal de Medicina (CFM), estudos próprios do Ministério da Saúde, a Agência Europeia de Medicina, reportagens publicadas em sites, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, o Hospital Israelita Albert Einstein e artigos científicos.
O Metrópoles procurou o Ministério da Saúde, mas a pasta não se manifestou até a última atualização desta reportagem. O espaço continua aberto para esclarecimentos.