Infectologista acusa Nise Yamaguchi de mentir
Foto: Bruno Poletti/Folhapress
A entrevista concedida pela oncologista Nise Yamaguchi, cotada para assumir o comando do Ministério da Saúde, ao UOL nesta segunda-feira (18) está provocando forte reação na comunidade médica brasileira. O infectologista e epidemiologista Carlos Magno Fortaleza, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, que dirigiu o Centro de Vigilância Epidemiológica do estado de São Paulo entre 2003 e 2005, fez um resumo crítico da entrevista. A seguir, a análise feita por ele na íntegra:
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1. A Dra. Nise diz que defende a cloroquina a partir dos relatos pessoais de médicos italianos. Também ressalta a experiência do Piauí, por ser coordenada por uma médica da Espanha, e nesse ponto contradiz a fala dos próprios médicos do estado, como pode ser confirmado em reportagem do UOL (leia neste link);
2. Recorre obsessivamente à autorreferência, com “minha formação” ou “trabalhei na França e EUA”. Também comete falácia ad verecundiam ao usar em defesa da cloroquina os estudos de Didier Raoult, um famoso infectologista hoje considerado exemplo de má prática científica (estudos com pequeno número de pessoas ou sem grupo controle);
3. Ao contrário, é extremamente rigorosa ao julgar os estudos publicados no New England Journal of Medicine, argumentando que são retrospectivos. O uso de dois pesos e duas medidas fica mais claro ainda quando defende as análises da Prevent Senior. Algo como: “coitados, é só um relato de experiência, que deve ser levado a sério pelo grande número de pacientes, e nem sequer foi publicado, é só um draft que vazou” (de onde se deve entender que é um “estudo-bebê”, e, coitadinho, estamos batendo nele quando devíamos abraçá-lo);
4. Sobre as semelhanças do episódio fosfoetanolamina (pílula do câncer) e da cloroquina (que incluem o entusiasmo de Jair Bolsonaro), adota duas estratégias incoerentes: primeiro, elogia o pesquisador e sua boa vontade de salvar as pessoas (ad verecundiam, de novo), e diz que um único ensaio clínico feito com pacientes graves não permite condenar a pílula do câncer (porém dá a entender que zero ensaios clínicos favoráveis não impedem de recomendar seu uso). A seguir, muda o discurso e diz que não entende de fosfoetanolamina e sim de cloroquina, portanto voltará a falar sobre ela;
5. Sobre a autoridade com que Damares opina sobre a cloroquina, desenvolve um raciocínio peculiar: A ministra percebe que o isolamento social aumenta a violência doméstica, ergo, está autorizada a promover os supostos resultados da cloroquina no Piauí;
6. Para agradar os adeptos de teorias conspiratórias, ataca — mas recua para não se comprometer — supostos interesses da indústria farmacêutica em desacreditar a cloroquina. Finge ignorar os interesses da indústria de promovê-la (que existem);
7. Reforça o argumento do uso com falácias como “os médicos em geral prescrevem” (petitio principii) e “David Uip e Kalil usaram” (falácia de classificação duvidosa: ad hominem ou ad verecundiam);
8. Ressalta a fantástica experiência de países como a Ucrânia, e foge da pergunta de por que o FDA americano, o ministério da saúde britânico e a agência europeia de medicamentos contraindicam a cloroquina. Insiste na retórica de que a salvação vem da Ucrânia e do Piauí, contra a maior parte do mundo;
9. Alude vagamente a teorias conspiratórias, mas volta atrás quando o entrevistador pergunta se ela acha que cientistas estão deliberadamente atacando a cloroquina e deixando as pessoas morrerem por falta da medicação;
10. Muito sutilmente desqualifica a consultoria científica do governo paulista (“O Davi Uip saiu, não foi?”) e muda de assunto para evitar as réplicas óbvias;
11. Ataca ferozmente os pesquisadores de Manaus, com argumentos já bem conhecidos das milícias de redes sociais: falta de ética, intoxicação das pessoas, etc. Quando questionada se doses menores são mais seguras ou mais eficazes, responde “as duas coisas”. Perguntada como explicar isso, foge do assunto;
12. Em todo momento usa uma estratégia bastante simpática a vários médicos, que é a de valorizar a “prática diária” e a “experiência profissional” acima dos estudos científicos;
13. Infelizmente, profere mentiras: insiste que a experiência do Piauí é excelente, quando os próprios médicos locais já negaram isso; deturpa informações metodológicas do artigo do New England Journal of Medicine, a ponto de fazer parecer a um leigo que é uma pesquisa espúria e mal-intencionada. E mente sobre a opinião do presidente (é baseada em estudos), além de fingir desconhecer a fala de que “se não faz bem, também não faz mal”. Porém todo seu discurso é mais em torno da segurança que da eficácia da cloroquina;
14. Mostra-se ambígua, mas tendendo a criticar o distanciamento social. “Que mal faz as pessoas ficarem ao ar livre com espaço de 2 metros em uma praia ou um parque?”. Nesse ponto, resta perguntar à ministeriável quem controlaria a distância de 2 metros;
15. Por fim, é sempre serena, educada e amável. Ficamos a imaginar que ao final da entrevista nos servirá café e bolinhos.
Acredito que é importante conhecer o modo de pensar e argumentar de alguém que pode em breve ser a nova Ministra da Saúde.